Biblioteca Municipal de Alvaiázere: A Caixa dos Sonhos

Um jovem venezuelano. Uma neerlandesa que veio dos Estados Unidos. Em Alvaiázere cruzam-se pessoas de toda a parte. Já assim era há dez séculos.

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Em 2006, a biblioteca criou um projecto a pensar nos bebés que nascem em Alvaiázere João da Silva
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“Ainda que popularmente conhecido como ‘Terramoto de Lisboa’, o evento sísmico de 1755 teve efeitos significativos em todo o País, com maior intensidade no Algarve e no litoral alentejano, mostrando-se bastante destrutivo na Estremadura, em localidades como Peniche, Leiria e Alcobaça.”
Mário Rui Simões Rodrigues, em Viagens pela História de Alvaiázere

A vila de Alvaiázere, situada no distrito de Leiria, a sensivelmente 170 quilómetros de Lisboa, também sentiu os efeitos do devastador terramoto de 1755: “Na vila de Alvaiázere arruinaram-se algumas casas, ‘pella pouca seguransa e antiguidade dellas’ pois ‘qualquer vento, ou tempestade rija as demoliria’. A Igreja Paroquial, ‘na parede da Naue que está para a parte do sul’, ficou com ‘tres rachas piquenas’, o mesmo sucedendo na frontaria, ‘das quaes nenhuma’ mostrava perigo. Apesar dos poucos estragos, ‘logo se recorreo a fazer preces, e no fim delles se fizerão dous sermoens com esmollas que se ajuntarão’. No ano do Terramoto, a freguesia de Alvaiázere tinha ‘300 fogos’. Aí viviam 503 homens de confissão e comunhão e mais 100 só de comunhão. Do sexo feminino havia ‘de confissão e comunhão 537 e sem confissão 120’ almas. No total, habitavam nesta freguesia 603 homens e 657 mulheres – um total de 1.260 almas –, não contando os menores de sete anos.”

Chamo a atenção para a última linha, mais precisamente para o conceito de almas, que na época excluía os menores de sete anos, ou seja, “os que ainda não frequentavam a comunhão e que não constavam dos róis de confessados e dos róis de comungados, listas que, a partir de certa altura, os párocos passaram a elaborar por imposição das Constituições Diocesanas”. Tanto se aprende ou recorda na leitura.

Mais um exemplo: “Com uma só nave, o corpo da igreja media, em comprimento, cinco braças e um palmo. Em largura, tinha três braças e três palmos. O chão era todo ladrilhado e o tecto madeirado de castanho, tendo um forro junto do arco cruzeiro com a largura de uma braça.” Braças e palmos, medidas de comprimento que atravessam séculos. Quem nunca transmitiu uma medida a outrem dizendo que tinha um, dois ou mais palmos? Uma braça corresponde “à envergadura de um homem com os dois braços estendidos, apresentando algumas variações locais. Pode atribuir-se-lhe uma equivalência de 1,82 metros”. Já a medida de um palmo “correspondia à distância alcançada pela mão estendida de um homem, entre as extremidades dos dedos mínimo e polegar”. Equivalia entre 20 e 22 centímetros.

Viagens pela História de Alvaiázere compila um importante “agregado de excursões científico-literárias sobre alguns assuntos da História portuguesa com repercussões em Alvaiázere”, explica o historiador Mário Rui Simões Rodrigues na introdução. São 446 páginas repletas de informação. Não é propriamente um livro para levar para a praia, até pela dimensão da encadernação, mas o teor do relato torna-o interessantíssimo, um livro para todos, não apenas para eruditos. Recorro novamente às palavras do autor: “O título justifica-se, também, pela circunstância de vários dos capítulos desta publicação versarem sobre viagens de estrangeiros e de portugueses que deambularam por lugares alvaiazerenses.”

— Como te chamas? Vens muito à biblioteca?

— Chamo-me Christopher e venho às vezes à biblioteca para fazer trabalhos, outras vezes venho com o meu amigo Mateus para usar os computadores. O Mateus é este que está aqui. Outras vezes venho para ler livros e requisitá-los, porque há aqui livros muito bons, e também para jogar PES.

— De onde vens?

— Venho da Venezuela, estou cá há dez anos. Tenho 12 anos.

— Então não te lembras de nada da Venezuela?

— Lembro, porque já fui lá de férias uma vez, por uma semana.

— E tu és o Mateus, não é?

— Sim. Às vezes venho estudar, vou ao e-mail e depois faço os trabalhos.

— Gostas de ler?

— Mais ou menos. Sim, mas só leio livros da escola.

— E tu, Christopher?

– Gosto de livros e de ler. Os livros daqui são mais interessantes do que os da escola. Gosto de livros de aventura.

— Também eu.

Minutos depois, conheci a Mónica.

— Aqui, chamam-me Mónica, girafa da Holanda. Estou em Portugal há cinco anos, para onde vim em busca de viver uma experiência ligada à terra. Eu vivia no Tennessee, nos Estados Unidos, onde a terra está morta. E eu quero viver uma experiência da terra viva. E aqui encontro isso —, explica, do alto dos seus dez palmos de altura.

E, cheia de entusiasmo, continua: “Na semana passada estive com uma arqueóloga que faz escavações no Complexo Megalítico do Rego da Murta e já a desafiei para fazermos coisas juntas, porque eu tenho muita curiosidade sobre como era a vida há seis mil anos. Há muito que podemos aprender disso. Nas escavações ela descobriu imensas coisas, mas o que me chamou mais a atenção foi um vaso com sementes com seis mil anos. Agora, em conjunto com a Associação Colher para Semear quero perceber se essas sementes vão crescer.”

Um jovem venezuelano. Uma neerlandesa que veio dos Estados Unidos. Em Alvaiázere cruzam-se pessoas de toda a parte. Já assim era há dez séculos, quando a vila começou a ser atravessada pelos peregrinos a caminho de Santiago de Compostela. “No século XI, era já grande o número de peregrinos que (…) chegavam a Compostela para venerar o Santo. Movia toda esta torrente de homens e mulheres, de diferentes idades, línguas e culturas, a ânsia do sagrado e do maravilhoso, o sonho de um contacto pessoal com um Apóstolo que havia sido íntimo de Cristo, a necessidade de penitência por pecados cometidos, a intercessão de S. Tiago na obtenção de um favor divino muito almejado, o agradecimento por uma mercê concedida, o cumprimento de uma promessa feita num momento de necessidade ou de aflição, o desejo de uma vivência espiritual de despojamento e de sacrifício ou o propósito de obter indulgências. (…) Além das suas vestes, o peregrino munia-se de um bordão em que se apoiava ao caminhar, de um bornal onde guardava os alimentos e o dinheiro indispensáveis à viagem, e de uma cabaça que se enchia de vinho ou de refrescante água. (…) Alguns peregrinos, pela sua velhice, pela incerteza da saúde ou por maior diligência, deixavam o testamento feito, dispondo mais sobre os assuntos da alma e da sua sepultura do que sobre os bens terrenos.”

Continuam a ser muitos os peregrinos que atravessam Alvaiázere. Mas, regra geral, não ficam na vila tempo suficiente para desfrutar da biblioteca, ao contrário dos que lá vão viver.

“Os estrangeiros que se fixam aqui visitam-nos muito no início para usar a internet e os computadores. Mas depois, com mais recursos e os filhos na escola, que aprendem a língua e os ajudam também na adaptação, acabam por se afastar. No entanto, há quem procure livros bilingues. Nesse sentido, vamos adquirindo alguns para os ajudar no conhecimento da língua”, explica Paula Marques, diretora da Biblioteca Municipal de Alvaiázere.

E os jovens? “O que noto é que os jovens não vêm consultar ou requisitar livros. Os que gostam de livros, compram-nos. E, às vezes, depois de os lerem, até nos vêm oferecê-los. Por isso, estamos a preparar uma nova sala para os jovens, para os cativar”, acrescenta. “A dada altura, tivemos um projeto intitulado ‘Caixa dos Sonhos’, em que os jovens do 1.º ao 3.º ciclo passavam todos na biblioteca. Foi-lhes dado um envelope e uma folha branca e, por desenho ou por escrito, eles escreviam três sonhos. Depois fechavam o envelope e colocavam-no na caixa, com data, identificação e idade.”

Essa caixa é um tesouro… “Se é! Está ali com centenas de envelopes. Entretanto, esses jovens já cresceram: alguns estão na faculdade, outros já saíram de Alvaiázere, enfim, já têm um percurso de vida. Muitos já me disseram que gostariam de ver o que escreveram na altura. Vai ser interessante abri-la um dia e, com estes jovens que agora têm quase 30 anos, perceber se os sonhos se realizaram ou não.”

Paula mostrou-me ainda a sala onde será criado o Laboratório do Pai Natal. “Em resultado de uma doação, temos aqui cerca de 10.000 Pais Natais. Vamos criar na biblioteca um espaço expositivo, mas também com ateliês, onde os idosos da universidade sénior irão restaurar brinquedos para dar-lhes uma nova vida e depois oferecê-los, no próximo Natal, a crianças de famílias carenciadas”, revela. A ideia é que este Laboratório do Pai Natal também abranja todas as atividades de artes e trabalhos manuais, funcionando ao longo do ano e não apenas no período natalício, acrescenta.

E, por falar no Pai Natal, a personagem querida pelas crianças de todo o mundo, a minha visita terminou na Bebeteca.

“Antes de abrirmos este espaço, já homenageávamos os bebés nascidos no concelho desde 2006. Tentamos passar a palavra a todos os pais de bebés nascidos em determinado ano, através da nossa comunicação social, nas igrejas durante as missas e nas juntas de freguesia, de que temos uma atividade adaptada a crianças de 1 ou 2 anos, a quem oferecemos um livrinho e o cartão de leitura da biblioteca, com o objetivo de que se tornem futuros leitores. Depois, damos-lhes as boas-vindas por nascerem no concelho de Alvaiázere, desejamos-lhes felicidades e um futuro longo e frutuoso, tanto no concelho como leitores da biblioteca. Estamos quase a celebrar 20 anos desta iniciativa e, em 2026, será muito interessante convidar aqueles bebés, agora jovens adultos, a refletirem sobre o impacto que esta iniciativa teve nas suas vidas. Foi a partir das boas-vindas aos bebés que criámos o serviço da Bebeteca, para não só os felicitar pelo nascimento, mas também oferecer-lhes um serviço contínuo, onde os pudéssemos acompanhar e captar o seu interesse desde tenra idade”, conclui Paula Marques.

Já ouviram falar de um projeto mais bonito?

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O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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