O golden retriever Goose está na linha da frente da luta contra o fentanil na América

Goose é um dos 536 cães farejadores que diariamente procuram substâncias ilícitas na fronteira dos EUA. A equipa cinotécnica esteve envolvida na apreensão de 28 mil quilos de fentanil.

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Goose é um dos 536 cães treinados para detectar drogas, armas, munições, dinheiro, e passageiros escondidos Mike Blake / REUTERS
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Um dos elementos mais valiosos dos Estados Unidos contra o tráfico de drogas na fronteira com o México faz uso do seu nariz para identificar as drogas ilícitas, uma técnica à moda antiga que as autoridades dizem ser o segredo para reduzir o fluxo de opióides sintéticos mortais.

Goose, um Golden Retriever cheio de entusiasmo, vagueia por um mar de carros parados, numa tarde quente, no enorme posto de fronteira de San Diego, um dos mais transitados do mundo, com cerca de 100 mil pessoas a entrarem nos EUA todos os dias.

O posto de controlo de fronteira está aberto 24 horas por dia e os cães enfrentam os gases de escape, o pavimento quente e dias de trabalho imprevisíveis, que podem passar de rotineiros a tensos numa questão de segundos.

Goose e o seu tratador, o funcionário da alfândega Joseph Arcia, entraram no recinto para mostrar à Reuters como o cão de seis anos consegue farejar o seu brinquedo de treino entre a multidão que atravessa os EUA a pé, reproduzindo aquilo que ele e outros cães fazem para detectar fentanil e outros produtos de contrabando diariamente.

O cão senta-se quando encontra o brinquedo, que está com um voluntário que atravessa a fronteira. Missão cumprida.

O golden retriever é um dos 536 cães da agência alfandegária e de protecção de fronteiras dos EUA (CBP na sigla original, do inglês Customs and Border Protection), treinados para detectar drogas, armas, munições, dinheiro, e passageiros escondidos nos pontos de passagem das fronteiras terrestres, aeroportos e portos marítimos da América. O aumento da entrada ilícita de fentanil e a epidemia de sobredoses associada levaram, em 2017, o CBP a tomar a decisão sem precedentes de treinar cães farejadores de drogas, um programa que se mostrou crucial para os esforços da agência.

O posto de fronteira de San Diego é um dos mais transitados do mundo, com cerca de 100 mil pessoas a entrarem nos EUA todos os dias Mike Blake/ REUTERS
Os cães enfrentam gases de escape, pavimento quente e dias de trabalho imprevisíveis Mike Blake/ REUTERS
Os cães farejadores procuram detetar diariamente fentail e outro contrabando Mike Blake/ REUTERS
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O posto de fronteira de San Diego é um dos mais transitados do mundo, com cerca de 100 mil pessoas a entrarem nos EUA todos os dias Mike Blake/ REUTERS

Apesar de se terem gasto milhões de dólares em tecnologia para fazer o rastreio dos veículos e a análise dos dados para identificar possíveis contrabandistas, o olfacto de um cão continua a ser uma ferramenta vital para descobrir o fentanil e outras drogas.

O fentanil é um poderoso opiáceo sintético que foi aprovado pelas autoridades americanas para utilização como anestésico em 1968, mas o aumento da produção clandestina e das sobredoses fatais na última década fizeram dele uma prioridade para as autoridades policiais e de saúde.

Estima-se que 75 mil pessoas tenham morrido de sobredose de opióides sintéticos em 2023, a maioria envolvendo fentanil, de acordo com o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA.

A grande maioria das apreensões de fentanil do CBP ocorre em passagens legais de fronteira no Arizona e na Califórnia, de acordo com as estatísticas. A maioria dos traficantes de fentanil condenados nos últimos anos são cidadãos norte-americanos, segundo dados da Comissão Penal dos EUA.

Os cães do Gabinete de Operações de Campo do CBP estiveram envolvidos na apreensão de mais de 28.576 quilos de fentanil desde o início do programa, de acordo com as estatísticas da agência.

O Presidente Joe Biden, democrata que procura a reeleição a 5 de Novembro, pediu aos republicanos no Congresso que aumentem o financiamento da segurança fronteiriça, incluindo os esforços de combate ao fentanil nos postos alfandegários. Os funcionários do CBP dizem que o financiamento poderia ajudar a expandir o uso de cães farejadores, que inclui um programa-piloto que treinou seis cães para cheirar os compostos químicos usados para fabricar fentanil.

Sidney Aki, o director do CBP para a área de San Diego, trabalhou como tratador canino no início da sua carreira, na década de 1990. Em declarações à Reuters, no ponto de entrada San Ysidro, no final de Maio, disse que os cães operavam em conjunto com scanners e análises de dados para eliminar o fentanil e outro tipo de contrabando.

"É claro que, se tivéssemos mais cães, se tivéssemos mais pessoal acompanhado por cães, faríamos muito mais", afirmou.

Forte motivação

Na academia canina do CBP em Front Royal, no estado da Virgínia, as autoridades aduaneiras de todo o país trabalham com os seus parceiros de quatro patas como parte de um processo para ensinar os cães a procurar contrabando que dura de quatro a seis meses.

Os cães são treinados para detectar seis substâncias: marijuana, cocaína, heroína, metanfetamina, ecstasy e fentanil. Numa primeira fase, os cães são treinados com brinquedos para mastigar cheios de "pseudo-narcóticos" que têm o mesmo cheiro que a droga real.

"Aquele brinquedo é a única coisa em que pensam", afirma Donna Sifford, directora da academia, durante uma visita exclusiva às instalações, em meados de Junho. "Quando cheiram estes odores e se sentam, tudo o que querem fazer é brincar com o objecto."

A academia, localizada numa pitoresca propriedade de 121 hectares no vale do Rio Shenandoah, tem áreas de treino que simulam o que será o ambiente de trabalho real dos cães, incluindo uma sala de rastreio de bagagens de aeroporto, uma correia transportadora de correio, e um parque de estacionamento exterior com dezenas de carros empoeirados.

Os cães tendem a ser pastores alemães, labradores, pastores holandeses e bracos alemães de pelo curto, disse Sifford. Goose é um dos três golden retrievers do programa.

A maioria provém de criadores na Europa, principalmente da Alemanha e da República Checa, só uma pequena parte é americana. Custam, em média, 11 mil a 12 mil dólares cada um e tendem a reformar-se quando atingem os 8 ou 9 anos de idade, diz a directora.

Goose é um dos 536 cães da Alfândega e Proteção das Fronteiras dos EUA Mike Blake/ REUTERS
O olfacto dos cães continua a ser uma ferramenta vital para descobrir fentanil e outros narcóticos Mike Blake/ REUTERS
Os cães do Gabinete de Operações de Campo do CBP estiveram envolvidos na apreensão de mais de 28 mil kg de fentanil desde o início do programa Mike Blake/ REUTERS
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Goose é um dos 536 cães da Alfândega e Proteção das Fronteiras dos EUA Mike Blake/ REUTERS

Algumas drogas pesadas podem ter cheiros distintos (a heroína por vezes cheira a vinagre, por exemplo), o fentanil é normalmente inodoro, pelo menos para os humanos.

Os cães levam três dias, em média, a aprender a detectar um novo odor, determina Sifford, mas antes de os treinos com fentanil começarem no CBP foi preciso desenvolver protocolos de segurança. Os treinadores transportam sempre quatro doses de naloxona (usado para tratar, de forma rápida, uma sobredose de opióides), que também pode ser administrado a cães, embora ainda não tenham precisado dele, afirmou

O CBP tem recebido pedidos de autoridades de outros países que querem aprender sobre as técnicas de treino do fentanil, incluindo acções de sensibilização na Argentina e França, disse Sifford. Também receberam pedidos de outros estados e localidades dos EUA.

Sifford reconhece que o trabalho pode ser um desafio para os cães, que têm de lidar com temperaturas sazonalmente elevadas, longos dias de trabalho, e o stress de circular no trânsito, mas afirma que o trabalho corresponde à sua criação e temperamento.

"Quando seleccionamos os cães para irem para a fronteira sudoeste, procuramos os cães de maior tracção que sabemos que podem realmente trabalhar neste ambiente e manter este ritmo", afirma.

"A melhor tecnologia disponível"

Os cães têm um olfacto exponencialmente mais potente do que os humanos, com até 200 vezes mais receptores olfactivos, segundo um estudo de 2022 publicado no Journal of Neuroscience.

Podem cheirar rapidamente as filas de veículos, revistar carros suspeitos e verificar passageiros. São particularmente úteis para descobrir o fentanil, que pode ser transportado em pequenas quantidades sob a forma de comprimidos ou pó.

"São como biossensores", disse Michael Gould, membro fundador da unidade canina do Departamento de Polícia de Nova Iorque, que agora trabalha como testemunha especializada em casos legais envolvendo cães-polícia. "É realmente a melhor tecnologia disponível."

Os cães têm limitações. Normalmente, só podem revistar veículos ou pessoas durante cerca de 20 minutos em tempo mais quente, antes de precisarem de fazer uma pausa, segundo as autoridades. Também podem dar falsos alarmes, com estudos que mostram uma escala de eficácia.

Embora as apreensões de fentanil pelo CBP tenham aumentado nos últimos anos, a agência parece interceptar apenas uma pequena percentagem da droga que entra nos EUA.

Um relatório de 2022 sobre opióides sintéticos, publicado por um grupo de legisladores americanos, funcionários do governo e peritos externos, estimou que apenas quatro toneladas de fentanil puro seriam suficientes para abastecer todos os utilizadores de opióides dos EUA durante um ano, uma fracção do consumo comparável de heroína em peso.

"É um ano inteiro de consumo de fentanil nos Estados Unidos que pode ser fornecido com três cargas da mesma camioneta", disse David Luckey, um investigador sénior da RAND Corporation, uma organização não-governamental e centrada nas políticas públicas, que participou no relatório.

O preço de rua do fentanil desceu para 1 dólar por comprimido ou menos em certas partes dos EUA, o que sugere uma ampla oferta.

Pete Flores, vice-comissário interino do CBP, disse à Reuters que a sua agência não estima a quantidade de fentanil ou outras drogas que podem entrar nos EUA sem serem detectadas, mas disse que os esforços visam interromper as rotas de trânsito e os modelos de negócios usados por organizações criminosas.

"Cada carregamento de narcóticos, particularmente de fentanil, que paramos, estamos a salvar vidas", disse Flores.