É aqui que eu desejaria viver…

Quando parece que as cidades nos pertencem cada vez menos, e escasseiam casas que possamos pagar, o que nos resta? O desejo onírico de viver na cidade, a resignação ou o combate cívico?

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Megafone P3 Matilde Fieschi
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Ao ler o livro A câmara clara, de Roland Barthes, deparei-me com uma fotografia intitulada Alhambra, captada por Charles Clifford. Barthes descreve assim a fotografia: "Uma casa antiga, um pórtico sombrio, telhas, uma decoração árabe do passado, um homem sentado encostado a uma parede, uma rua deserta, uma árvore mediterrânica (…)". Sob a fotografia impressa, a seguinte frase: "É aqui que eu desejava viver…"

A fotografia de 1854 despoleta em Roland Barthes um desejo profundo de habitar aquele ambiente, sem nunca saber a que se deve tal desejo. Questiona se será "calor do clima", "mito mediterrânico", "apolonismo", ou até mesmo "anonimato" ou "nobreza". Apesar de não conseguir esclarecer o leitor de forma objectiva, Barthes tem a certeza de uma coisa: tal atracção inexplicável de habitar um espaço ou uma paisagem nunca provém das fotografias turísticas, e nunca será saciada por estas — "(…) as fotografias de paisagens (urbanas ou campestres) devem ser habitáveis e não visitáveis".

O termo "visitáveis", empregue por Barthes aquando da escrita do seu livro, é lisonjeiro quando comparado com a situação a que assistimos actualmente. A lógica do marketing territorial dita que, através de práticas publicitárias, se simplifiquem as cidades e as paisagens de uma determinada geografia, transformando-as em rótulos comerciais — lugares enquanto imagens de marca. Como explica o geógrafo catalão Oriol Nel·lo na obra A cidade em Movimento (publicada em Portugal pela Tigre de Papel), ao simplificarmos o carácter heterogéneo das cidades, com vista à sua promoção, estamos a privilegiar uma relação com a cidade enquanto consumidores, ao invés de nos relacionarmos com os espaços urbanos enquanto cidadãos.

Esta relação comercial estende-se às nossas rotinas enquanto habitantes ou turistas de uma cidade. Torna-nos indiferentes perante as suas paisagens. Visitamo-las através das potentes câmaras dos telemóveis, atravessamos praças, ruas e ruelas com o olhar nos ecrãs, e, quando cansados, pousamos numa esplanada com Wi-Fi, prontos a descarregar as fotografias nas redes sociais. A nossa capacidade de nos relacionarmos com o espaço público tornou-se inversamente proporcional à crescente comercialização dos territórios, e a dificuldade em arrendar ou comprar casa na maioria dos centros urbanos é também um sinal desta simbiose quebrada entre o indivíduo e a cidade.

Nos últimos dias o alerta soou em Barcelona. Pioneira em questões de urbanismo e com uma população empenhada na constituição de movimentos sociais urbanos, os seus cidadãos procuram, de forma continuada e consistente, condicionar as decisões administrativas e políticas, muitas vezes contrárias aos interesses comuns de quem habita a cidade, batalhando por melhores condições de habitação, melhores espaços e serviços públicos, e uma maior consciencialização com o ambiente. Quando a acção colectiva de uma cidade com este historial cívico e participativo se manifesta, empunhando cartazes que afirmam que a cidade não está à venda, significa que estamos próximos do limite.

O livro de Roland Barthes é uma obra canónica, e ainda assim peculiar. Parece ser um ensaio sobre fotografia, mas é na verdade um livro sobre a dor e a memória. Este texto também versa sobre essa angústia e melancolia — a dor e a memória das cidades, que outrora construídas para habitar, são hoje cidades para visitar.

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