Aristides não era santo. Quem disse que tinha de ser?

Um simples carimbo no passaporte era, de facto, essencial para salvar uma pessoa, famílias inteiras.

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Museu Aristides de Sousa Mendes, em Cabanas do Viriato, a terra natal do cônsul de Bordéus paulo pimenta
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Quando, em 2021, a dias da homenagem no Panteão Nacional, me preparava para escrever sobre Aristides de Sousa Mendes e a Casa do Passal, ainda à espera do futuro que agora chegou, lembro-me de alguns ergueres de sobrolho, aqui e ali, de pessoas que me diziam como a decisão de homenagear o antigo cônsul seria ainda alvo de controvérsia, mal vista por certas camadas da sociedade.

Não percebi. Não percebi por que razão um homem que fora uma peça-chave para o salvamento de milhares de pessoas, num acto de desobediência a uma regra desumana, num tempo extraordinário, podia ser visto como alguém que não merecesse todas as homenagens. Mas a minha ingenuidade foi rapidamente clarificada.

No texto que então publiquei ainda lá estão os comentários de vários leitores, dirigidos à homenagem que se avizinhava. A maior parte elogia o antigo cônsul, mas alguns indignavam-se com a colocação da placa comemorativa no panteão. “Evidentemente um equívoco”, escrevia um, para logo a seguir varrer para debaixo do tapete da insignificância a emissão de vistos, em 1940, por parte do então cônsul em Bordéus (França), salientando que o antigo diplomata tinha tido “uma vida muito pouco exemplar”. “Fazê-lo herói só porque num contexto de perturbação desobedeceu a Salazar é ridículo”, acrescentava.

Esta posição, que procura associar a desobediência de Aristides de Sousa Mendes a algo condenável, ao mesmo tempo que se realçam aspectos menos favoráveis da sua vida pessoal e profissional, está, até hoje, patente na longa entrada que sobre ele se encontra na Wikipédia, em que se chega a escrever: “As pessoas com vistos emitidos por Sousa Mendes foram autorizadas a entrar em Portugal, foram acolhidas, alimentadas e apoiadas. Um simples carimbo no passaporte não teria bastado para salvar um refugiado.”

Isto pode parecer muito sensato, mas não é verdade. Um simples carimbo no passaporte era, de facto, essencial para salvar uma pessoa, famílias inteiras. Era preciso tudo o resto para que essa vida continuasse (meios para viajar, acolhimento à chegada, não ver a entrada recusada e ser devolvido ao país de origem)? Claro que sim. Esse processo teria alguma hipótese de sucesso sem um visto? Dificilmente. Aquele carimbo era a porta aberta para cruzar fronteiras, para seguir caminho, para chegar à segurança.

Aristides de Sousa Mendes não era perfeito. E não me parece que alguém alguma vez tenha querido insistir nessa teoria. Era só um homem, cheio de defeitos, com dívidas e alguns traços a vermelho no seu percurso profissional. Era membro do corpo diplomático da ditadura de António de Oliveira Salazar, pelo que se pode supor que estava alinhado com as suas políticas para o país e tudo o que isso implicava, ao nível da liberdade e dos direitos humanos.

Mas, quando tudo o que se exigia em termos de humanidade era desobedecer e tentar salvar o máximo de pessoas possível, foi isso que ele fez – apesar de todas as suas imperfeições. Quantos de nós podem ter a certeza que agiriam da mesma forma, naquelas circunstâncias? Eu gostava de dizer que sim, mas não posso.

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