Portugal continua com lacunas na proteção das crianças intersexo

Seis anos depois da aprovação do direito à proteção das características sexuais, as crianças intersexo continuam sem ser devidamente protegidas.

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Em 2018, a Assembleia da República aprovou, pela primeira vez, o direito à protecção das características sexuais, limitando modificações medicamente desnecessárias nas características sexuais das pessoas menores intersexo. Seis anos depois, as crianças intersexo continuam a não ser devidamente protegidas.

Embora tenhamos tido progresso, a lei actual não se mostra suficiente para garantir a integridade das crianças intersexo. Em vez de proibir quaisquer procedimentos médicos adiáveis e desnecessários em crianças intersexo até ser possível obter o seu consentimento informado, a legislação actual faz referência ao “momento em que se manifesta a identidade de género” como o ponto de partida para a sua realização.
Continuamos a ver hospitais a divulgar estas modificações em crianças intersexo sem a existência de um comprovado risco para a saúde ou consentimento da criança.

Pessoas intersexo desenvolvem naturalmente características sexuais, como cromossomas, genitais, gónadas, padrões hormonais e características sexuais secundárias, que não se encaixam nas noções típicas de "sexo feminino" ou "sexo masculino”. Não se trata de uma categoria única de corpo, existem várias formas de ser intersexo.

Muitas famílias são aconselhadas ou pressionadas a permitir que as crianças intersexo passem por intervenções médicas adiáveis e irreversíveis, sem o seu consentimento livre e informado, para conformar os seus corpos às normas de género. Estas intervenções raramente são medicamente necessárias e violam a integridade física e mental das crianças, podendo causar dor, esterilização, perda de sensibilidade genital, incapacidade de produzir hormonas sexuais, problemas de saúde mental e um corpo indesejado pela pessoa. Prevalece assim a tentativa de conformar as crianças às normas de género, sem prezar pela sua integridade física e mental.

Profissionais de saúde ou a família podem assim alegar ou acreditar que a identidade de género da criança foi “manifestada”. Afinal, o que seria esta “manifestação”? Quem garante que não serão usados estereótipos? As crianças estão especialmente vulneráveis devido à sua dependência familiar. A habilidade de uma criança, seja mais nova ou velha, de se defender contra a pressão para dar o seu “consentimento” ou de perceber as informações necessárias é questionável, mas nem é previsto procurá-lo na lei.

Muitas vezes, a comunidade médica reage às leis que visam proibir cirurgias em crianças intersexo adoptando uma definição restrita. Nestas restrições, apenas os corpos mais conhecidos como intersexo acabam protegidos, excluindo variações menos conhecidos. Ao fazer isso, utilizam a narrativa falsa de que estão a operar em crianças com “anomalias” do “sexo feminino" ou "masculino", e não em pessoas intersexo. Essa estratégia é conveniente para a comunidade médica. Ao reduzir o número de pessoas consideradas intersexo, menos pessoas são protegidas pela lei e mais procedimentos podem ser realizados.

É crucial esclarecer a proibição legal das crianças intersexo de procedimentos médicos desnecessários e não consentidos, algo que já foi pedido pela ILGA-Europa. A melhor solução seria universalizar a protecção das características sexuais, proibindo qualquer modificação nessas características em menores de idade, excepto em casos urgentes de risco comprovado para a saúde, até que seja possível obter o consentimento informado da pessoa. Impede assim o uso da narrativa de “anomalia do sexo" como estratégia para burlar as protecções actuais. Mas vejo um benefício extra: não são apenas as crianças intersexo que vêem a integridade das suas características sexuais violada. A esterilização forçada das pessoas com deficiência em Portugal ainda é permitida por lei. A circuncisão peniana em crianças sem motivos de saúde e consentimento é igualmente permitida. Estas pessoas também merecem ter a sua integridade física protegida.

É preciso educar para a existência dos corpos intersexo e para o consentimento informado. Toda a sociedade deve sensibilizar-se para estas questões, pois a integridade física e a autonomia sobre os nossos corpos dizem respeito a todas as pessoas. Ninguém deve questionar os procedimentos que acontecem por autodeterminação, isto não deve afectar o direito das pessoas intersexo, ou de qualquer pessoa, de escolherem passar por estes procedimentos, mas devem ser reunidas as condições para o exercício pleno da autonomia.

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