O título desta newsletter foi inspirado no mais recente livro do escritor e ilustrador Afonso Cruz: O Pai Natal não vive no Pólo Norte, publicado em Novembro pela Penguin. É uma obra perturbadora e necessária sobre a forma como vivemos as épocas festivas. A narrativa funciona como um díptico contraditório: enquanto o texto nos fala de renas que arrastam o trenó e duendes que fabricam presentes, as imagens expõem meios de transporte poluentes e o trabalho infantil.

O livro de Afonso Cruz tem o condão de despertar o leitor para os paradoxos que nos rodeiam: as múltiplas prendas que damos e recebemos nestas celebrações, muitas delas inúteis, contribuem para aquecer não só a economia, mas também o planeta. A alegria das crianças e a mesa farta podem estar perversamente conectadas, através de um fio quase invisível, à exploração laboral e à degradação ambiental. Todo o lixo que encontrámos esta manhã à volta de contentores abarrotados é o reflexo dessa ambivalência absurda.

A paisagem urbana está particularmente suja em Lisboa, onde os trabalhadores que recolhem resíduos fazem uma paralisação total nos dias 26 e 27 de Dezembro. A Câmara Municipal chegou mesmo a criar uma "equipa de gestão de crise", "disponível 24 horas", para minimizar o impacto visual da montanha de lixo que somos capazes de produzir num dia. A greve dos funcionários que mantêm a cidade limpa expõe, entre outras coisas, a rapidez com que consumimos e descartamos embalagens, objectos e alimentos.

Sabemos que a actividade industrial e o transporte de mercadorias são dois sectores que queimam desenfreadamente combustíveis fósseis, lançando uma enorme quantidade de carbono para a atmosfera. Daí que o consumismo esteja intimamente ligado às alterações climáticas e à poluição – não só do ar, mas também dos solos (onde enterramos resíduos) e do oceano (cujas águas estão cada vez mais quentes e cheias de plástico).

Mais do reaproveitar embrulhos e congelar os restos da ceia – medidas que sobrecarregam apenas o cidadão –, precisamos de uma equipa de gestão de crise climática capaz de convencer líderes políticos e empresariais a transformar o modelo de produção e de incentivo ao consumo, com o objectivo de reduzir drasticamente a emissão de gases com efeito de estufa. Infelizmente, em 2024 testemunhámos poucos progressos neste sentido. Este ano chega ao fim com uma colecção de recordes climáticos, fenómenos extremos e cimeiras decepcionantes.

A obra O Pai Natal não vive no Pólo Norte está longe de retirar fulgor à época festiva. Pelo contrário, oferece uma prenda que nos dá esperança: o estímulo ao pensamento crítico. Como escreve a autora Joana Bértholo no posfácio do livro, "uma das muitas coisas que me atraem nos livros de Afonso Cruz é a forma que têm de urdir sombra e luz, levando-nos pela mão pelo que na experiência humana há de inconciliável, intratável ou penoso, sem nos deixar perder de vista a beleza, a poesia e o espanto". E esta história de Natal "é um exemplo disso".

Feliz Ano Novo.