Borgonha, regresso ao essencial
Diogo Lopes relata a sua última viagem à Borgonha, paraíso para enólogos apreciadores de vinho. Aqui percebemos bem o conceito de terroir e o rigor no uso de barricas. Leitura obrigatória.
Já repararam, por certo, como a generalidade dos especialistas da produção de vinho passa o tempo a falar de experimentação, de novos processos, de novas expressões para castas e terroirs, de edições limitadas e de referências inéditas. Enfim, de vinhos que são únicos, sempre únicos! Pois bem, neste novo mundo e em particular neste retângulo bem pequeno e português, um vinho pode ser uma magnífica obra one-shot, ou em alguns casos até iniciar um trajeto de consistência, com alguns anos ou até décadas... e todos nós gostamos de falar e de (nos) convencer de como isso é extraordinário! Porquê? Porque não temos mais nada.
O que temos é esta fatalidade: sermos um país-criança no mundo do vinho e estarmos praticamente a construir tudo. Não temos décadas ou séculos de consistência na nossa qualidade e identidade. E é por isso que, invariavelmente, também acabamos todos a coincidir na nossa referência. Onde estão os grandes vinhos? Na Borgonha. Onde está a produção que me inspira? Na Borgonha.
É isso, falamos... falamos, damos a volta ao mundo, bebemos tudo e mais alguma coisa e, no fim, queremos sempre regressar ao essencial: a um Chardonnay ou a um Pinot da Borgonha. Tão simples que parece redutor. Não é. Tudo se complica de forma verdadeiramente apaixonante quando tomamos consciência do que está realmente envolvido. No terroir, nas vinhas de cada casa, na especificidade do trabalho de madeiras, na valorização do trabalho do Homem, na dimensão dos vinhos.
Este texto é uma humilde proposta de entendimento da Borgonha. E pecará sempre por escasso, porque o que está em causa é de uma dimensão que não se escreve. Conceda o leitor a tolerância possível, sabendo que o enólogo que assina este texto tem mais de 20 anos de carreira, vinho feito um pouco por todas as regiões de Portugal, e, à sexta visita à Borgonha, continua a sentir-se como uma criança que chega pela primeira vez à Euro-Disney. Esmagado de entusiasmo. Ora vamos.
A vinha manda, mesmo!
Desde logo, a Borgonha será a mais prestigiada e emblemática região de vinhos no mundo porque é aquela que melhor conseguiu trazer para a categorização do vinho a ideia de terroir.
De uma forma simplista, seja pela identificação regional (Borgonha), de aldeia (Village), de qualidade das vinhas (Premier Cru – expressão das melhores denominações de aldeia), ou de excelência das parcelas (Grand Cru – o expoente máximo da qualidade), o rótulo de um vinho é o espelho fiel da região, da casa e da terra que lhe dá origem. Provada e afinada ao longo de s-é-c-u-l-o-s.
A Borgonha é o respeito absoluto pelo terroir, pela identidade da propriedade, pela dimensão do que lá é produzido. Tanto que essas mesmas vinhas, parcelas ou propriedades estão muitas vezes muradas, isto é, identificadas, vedadas, em função do que representam e proporcionam. A propriedade é ela própria o rótulo do vinho, tem história e identidade. E é por isso que tem um valor inquestionável e incalculável. Quando olhamos um rótulo, estamos perante um documento que é um roteiro geográfico categorizador do que está no copo. Ponto final. Borgonha, Village, Premier Cru, Grand Cru. Assim mesmo, mais nada, para tristeza de toda a indústria de criatividade de rotulagem.
Simplificando as classificações:
- Borgonha - vinho que mistura uvas de diferentes origens dentro da região. São normalmente os vinhos mais acessíveis em preço.
- Village - vinho onde se destaca o nome da vila (ou aldeia), um Meursault por exemplo, que é uma seleção de diferentes parcelas dentro da mesma denominação de vila
- Premier Cru - aqui normalmente já se destaca uma vinha especial, dentro da vila onde está a vinha. Será uma vinha que está classificada como “Premier” pela qualidade e consistência que tem ao longo dos anos. Exemplo: Meursault Perrières Premier Cru.
- Grand Cru - o princípio é semelhante ao anterior, mas aqui as vinhas são consideradas as melhores das melhores, dando origem aos vinhos mais distintos e famosos da região, e naturalmente aos mais valiosos. Exemplo: Montrachet Grand Cru.
Para (des)complicar um pouco a Borgonha, importa referir que é comum encontrar-se o nome da mesma vinha (e, logo, mesma appellation) em produtores variados. Isto é assim porque é normal que em muitas vinhas existam diferentes proprietários. A mais famosa será a vinha do Grand Cru Montrachet, que são 8 hectares distribuídos por 16 proprietários. Por outro lado, há vinhas que são Monopole, ou seja, são de um só proprietário. As duas mais famosas pertencem ao mesmo produtor: Romanée-Conti e La Tache, vinhas Grand Cru do Domaine de La Romanée-Conti, na vila de Vosne-Romanée.
As pessoas e a valorização do trabalho
Sim, sexta visita à Borgonha e de lá regresso, mais uma vez, impressionado com o mérito do trabalho das pessoas que se dedicam à terra e à vinha. E com o reconhecimento que lhes é atribuído. Se o nosso país do vinho peca numa lacuna gravíssima, ela está precisamente na valorização da importância do agricultor. É certo que o mercado português é limitado e o reconhecimento internacional ainda não nos permite dar o verdadeiro valor ao interessantíssimo produto final que temos, mas por consequência sofre, sobretudo, o agricultor – a quem não conseguimos pagar o preço justo pelas uvas produzidas.
Na Borgonha é incrível ver como toda uma região gravita à volta do setor do vinho. E testemunhar o respeito imenso que existe pelos viticultores, personalidades consideradas por todos. Conseguem, de facto, viver do que a terra lhes dá, graças à valorização que conseguem para as uvas que produzem. E esse valor distingue-se de uma vinha para a outra, às vezes separada por uma estrada, que é fronteira entre um Grand Cru e um Premier Cru.
O que mais adoro é mesmo falar com – perdão, ouvir – estes Vignerons da Borgonha, perceber como fazem a sua viticultura, também por lá cada vez mais virada para as práticas biológicas e sustentáveis, tentando respeitar ao máximo o ambiente e, sobretudo, protegendo o que lhes é sagrado: o terroir.
Como a aprendizagem de um enólogo é permanente, dou por mim calado a apontar mentalmente a forma como vinificam esta e aquela parcela, como cada um trabalha as suas uvas na adega, de forma a não mascarar o terroir, mas sim a potenciá-lo. E também a apontar que tipos de barricas, quais as tostas, com ou sem bâtonnage. São tantas as experiências individuais, são tantas as variáveis, são tantas as perguntas, são tantas as respostas a cada desafio, porque cada ano é sempre diferente. Enfim, lá vou eu na minha sexta viagem à Borgonha e sinto que por lá ficaria um mês a aprender. E provavelmente a concluir que teria de voltar.
O apaixonante trabalho das madeiras
A questão das madeiras é especialmente apaixonante. Comecei a minha carreira ao lado do mestre Anselmo Mendes a fazer testes de fermentação de Alvarinho em diferentes barricas de carvalho francês, há uns 20 anos. Aprendi muito. E na Borgonha sinto que foi pouco.
É claro para mim que a floresta de carvalho é ainda um labirinto cheio de possibilidades. Esta visita à Borgonha nasceu precisamente com o intuito visitar duas tanoarias que admiro muito, a Ermitage (do grupo Charlois) e a François Frères. É sempre um grande momento ver como se trabalha nestas empresas, entender o rigor que têm na seleção da madeira, confirmar que existem grandes diferenças no grão e na porosidade do carvalho, e qual pode ser o impacto sensorial nos vinhos que queremos fazer.
Nestas tanoarias, tudo é preparado ao detalhe. Aliás, tudo começa na gestão da floresta, assegurada pelo maior proprietário do país, o Estado francês, verdadeiramente eficaz na legislação e regulamentação de um recurso crucial para a Economia e para o Ambiente (parece tudo tão lógico, certo?). Define-se em rigor o abate, a idade, o tipo de corte, a seleção e o destino final de cada tronco.
Se o destino do carvalho for uma tanoaria, a seleção de madeira acaba em parques de estágio e seca ao ar livre, entre dois a quatro anos, no Norte do país, onde chove e neva com mais frequência – e onde se assegura uma eficaz lixiviação de taninos (os tais componentes que, numa barrica, iriam dar uma prova mais desagradável ao vinho). Assim que nos aproximamos de pilhas de madeira mais nova, vemos um rio amarelo a escorrer junto a estas, com os tais taninos a irem embora. O resultado final é uma madeira mais fina, mais elegante.
Um dos momentos sensoriais mais extraordinários de uma visita destas chega com a oportunidade de provar os mesmos vinhos feitos com madeiras de tanoarias diferentes, decifrando como uma mesma colheita se traduz num vinho totalmente diferente. Perceber que num ano mais quente ou mais fresco o caminho da vinificação é ir pela madeira X da tanoaria Y, e que no ano seguinte o melhor resultado será outra solução qualquer, é resultado de um processo de aprendizagem constante, que contradiz qualquer fórmula de Excel – não, afinal os enólogos não se limitam a fazer vinhos por Excel!
É este o admirável mundo do vinho, em que não conseguimos ter uma fórmula replicável ano após ano. A consistência nasce de um experimentalismo que não tem fim ou da capacidade de nos adaptarmos – e aí, também os franceses nos falam de como estão a sentir na pele os fenómenos das alterações climáticas, como estão a reagir aos verões mais quentes, às primaveras inconstantes e às geadas fora de época (que em anos trágicos chegam a levar-lhes quase 80% da produção).
E agora, perdoe mais uma vez o caro leitor, deixe-me partilhar esta dimensão enochata, de como é mesmo possível, percetível, claro como água, provar um vinho com o seu criador, ouvi-lo enquanto o caracteriza, e sentir na boca as diferenças que existem entre um vinho de Les Combettes ou outro da Les Cailleret, ambos Premier Cru, naturalmente ambos Chardonnay, vinhos aparentemente tão próximos e tão diferentes entre si. Perdoe, de novo, porque isto é algo que não se traduz aqui. É algo que só se sente com o copo na mão. E com o Vigneron a falar à nossa frente.
Os vinhos
Chegamos, finalmente, aos vinhos. Visitar a Borgonha tem forçosamente de coincidir com conhecer a rica gastronomia e aproveitar para beber grandes vinhos. Que não têm de ser necessariamente os inatingíveis. É possível ter atenção na escolha e resistir à tentação de ir atrás da fama – até para não vendermos o carro quando voltarmos a casa.
Nesta viagem, na verdade, tive escolhas inesquecíveis, surpresas e até uma grande desilusão (também sucede). Bebi por exemplo um Bourgogne Blanc, do famoso produtor Roulot, um dos Borgonhas mais baratos encontrados em restaurante, cerca de 70 euros (pois... isto da Borgonha não é fácil) e que tinha tudo aquilo que se procura num branco: equilíbrio perfeito entre a fruta e a acidez; a complexidade alinhada com uma madeira tão importante quanto discreta. Enfim, nada em excesso, nada fora do sítio, uma espécie de jackpot que nos surra pela elegância, e que normalmente dizemos que nos sai muitas vezes, mas percebemos que é mesmo diferente quando nos sai... um Borgonha! Um grande vinho!
Também aconteceu pedirmos um tinto, de um produtor muito badalado e muito ligado à onda dos vinhos de mínima intervenção, em que não conseguimos acabar a garrafa. E custou cerca de 380 euros! É complicado isto da mínima intervenção, porque por vezes significa máximo risco.
Escolher um vinho num restaurante na Borgonha é sempre um desafio imenso, em particular quando olhamos para a margem direita das páginas da carta e isso nos faz questionar se estamos num restaurante ou numa relojoaria. É o preço da fama e de um (enorme) turismo mundial que ali se desloca para comprar e provar vinhos (foram imensos os americanos e japoneses com quem me cruzei). É importante ter informação para se saber escolher e, sobretudo, ir mentalizado para gastar alguns euros e dar verdadeira alegria ao momento.
Nesta viagem beberam-se outros vinhos de produtores memoráveis: um grande branco, Chassagne-Montrachet, Premier Cur Morgeot, de 2020 do grande Jean-Claude Ramonet. Um dos meus produtores preferidos, sempre com brancos com grande tensão, únicos; um Corton-Charlemagne, Les Languettes, Grand Cru, de 2017 do Domaine Julien Gros... que enorme vinho! Os Corton-Charlemagne são sempre os Borgonhas com mais músculo, mais corpo, supermarcantes.
E porque Chablis também é Borgonha, lá tivemos de ir a um dos meus produtores preferidos: Chablis Premier Cru Montée de Tonnerré de 2018, do Vincent Dauvissat. Mesmo num ano mais quente, como 2018, este produtor conseguiu manter o fio condutor dos seus vinhos, tensão e boa acidez para equilibrar o conjunto.
Nos tintos regressei a um nome que aprecio muito, David Duband. Destaco o Gevrey-Chambertin 2021, com uma fruta superfresca que não se consegue parar de beber. Provei-o ao lado do Nuits-Saint-Georges (NSG), também de 2021, e sente-se bem que os NSG são mais musculados do que os Gevrey. Mas a estrela foi um grande Echezeaux Grand Cru de 2014, deste produtor. Que finesse, que elegância, perfeito para um wellington de pombo bravo. Como eu gosto de ti, Borgonha!
Como fiquei com o “bichinho” do Gevrey, voltei a esta denominação com outro produtor: um Gevrey-Chambertin Premier Cru Les Champeaux de 2021, do Olivier Guyot, a confirmação de que esta appellation é mesmo das minhas preferidas nos tintos da Borgonha. Tem sempre um pouco de tudo aquilo de que gosto nestes tintos: notas de fruta silvestre, ligeira terra, especiaria e uma finesse inigualável.
Por fim, quis o destino que esta viagem à Borgonha me trouxesse a melhor experiência de vinhos de sempre. Era uma vez um jantar em casa do sr. Jean François, proprietário da Tonnellerie François Frères, num daqueles encontros mais intimistas que reúne enólogos e produtores de vários países, e em que o anfitrião resolve surpreender a mesa com alguns dos melhores vinhos da Borgonha. Alinhamento épico.
Uma magnum do Richebourg da Romanèe-Conti, de 2010, uma vinha famosíssima e o produtor mais famoso do mundo, o DRC. Depois, um branco incrível de um dos melhores produtores de brancos do mundo: Domaine Coche-Dury, um Meursault Perrières Premier Cru 2013. Fabuloso. Será este o melhor branco que já bebi?
Quando ainda estou a meio do sonho, pergunta-me o sr. François se havia mais algum produtor que eu gostasse de beber (sim beber, que o registo não era de prova). E eu, atrevido, claro, falei no Domaine Armand Rousseau, de onde nunca tinha provado nenhum dos Grand Cru. Passado um pouco, lá aparece a garrafa de um Chambertin Grand Cru 2014. E aí, era oficial – já estava a ver a Euro-Disney do céu.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico