Charlie Phillips foi o herói não celebrado da fotografia britânica

Entre 1960 e 1990, fotografou o quotidiano das comunidades imigrantes negras em Londres. Retratou Jimi Hendrix, Muhammad Ali. O livro que reúne todo o seu trabalho sai em Setembro.

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Notting Hill Couple, Anita Santiago e Osmond (Gus) Philip, numa festa em Notting Hill, 1967 Charlie Phillips
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Até chegar a Londres vindo da Jamaica, em 1955, com apenas 11 anos, Charlie Phillips nunca tinha sonhado ser fotógrafo.

Quis o destino que uma câmara fotográfica Kodak Retinette esquecida lhe fosse parar às mãos e lhe moldasse um rumo. Foi graças a ela que embarcou numa aventura que, ao longo dos anos 1960, 70 e 80, o levou ao contacto com figuras tão icónicas como o pugilista Muhammad Ali, o músico Jimi Hendrix, o cineasta Federico Fellini ou mesmo Henri Cartier-Bresson, mestre da fotografia.

Não foram (apenas) os seus retratos de celebridades que lhe trouxeram reconhecimento enquanto fotógrafo. O seu legado, vasto e historicamente rico, é centrado sobretudo no raro registo do quotidiano das comunidades imigrantes de origem africana e caribenha que, na capital inglesa, que se debatiam com graves problemas de integração num período marcado pelo surgimento de vagas de ataques racistas.

No exterior do Piss House Pub, na rua Portobello, em Notting Hill, Londres, 1968 Charlie Phillips
Criança acompanhada dos avós, Notting Hill, Londres, 1973 Charlie Phillips
Carnaval em Notting Hill, Londres, 1968 Charlie Phillips
Bailarinas sul-africanas no Cue Club, Notting Hill, Londres, 1970 Charlie Phillips
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No exterior do Piss House Pub, na rua Portobello, em Notting Hill, Londres, 1968 Charlie Phillips

Conhecido por “Smokey” em Notting Hill, onde residiu, Phillips era apenas mais um dos milhares de imigrantes que, a convite do Reino Unido, engrossaram a mão-de-obra inglesa no rescaldo da II Guerra Mundial. Fotografou a partir de dentro, com olhar intimista, o interior das casas de famílias dos bairros negros, os bares e os artistas que os frequentavam, na modesta cena de Notting Hill, que, longe da gentrificação actual, era composta sobretudo por guetos; registou os eventos mundanos das comunidades negras marginalizadas, festas e funerais, e produziu documentos que lançaram luz sobre a história desse período.

O historiador inglês Simon Schama apelidou Phillips de “poeta visual: cronista, campeão… um dos grandes retratistas fotográficos do Reino Unido” em 2015, ano em que foi feito o grande levantamento e digitalização do seu arquivo fotográfico que conduziu, finalmente, ao seu mais do que merecido, embora tardio, reconhecimento nacional. No seguimento de uma campanha de crowdfunding lançada pela editora londrina Bluecoat Press, que decorreu durante os últimos meses de Maio e Junho e arrecadou quase 18 mil libras (21 mil euros), será lançado em Setembro o primeiro livro retrospectivo do seu trabalho.

“Eu era um fotógrafo das pessoas comuns”, contou Charlie à Bluecoat Press. “Era um rapaz negro, comum, do gueto – um pouco radical, parte da cultura alternativa da época.” Associado à cultura da beat generation, identificava-se com o pensamento de Allen Ginsberg, Jack Kerouac, e partilhava com Che Guevara uma veia anticolonialista. Não era, assim, com ingenuidade que Phillips apontava a lente da sua câmara aos anúncios de arrendamento de quartos, em Londres, que, expressamente, indicavam “no coloured”, ou para as paredes grafitadas com a mensagem “keep Britain white”.

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Muhammad Ali, Zurique, 1971 Charlie Phillips

A mesma intencionalidade e olhar politizado estão patentes no retrato terno, desafiador para a época, conhecido por Notting Hill Couple, no qual um jovem homem negro abraça uma jovem mulher branca, captada em 1967. “Penso que nunca nos foi dada uma plataforma para mostrarmos a nossa cultura, o nosso lado da história”, disse ao jornal britânico The Guardian em 2021. “Não se trata de história negra, mas sim de história britânica, goste-se ou não. Temos sido ignorados. Sinto isso pessoalmente.”

Da indigência à celebridade

A vida de Charlie Phillips dava um filme.

No final da década de 60, começou a apontar a lente para fora da sua bolha, ainda enquanto fotógrafo amador. Em Londres, documentou as marchas estudantis de protesto contra as armas nucleares, o apartheid, a guerra no Vietname, sem olhar a cores. Imbuído desse espírito revolucionário, viajou até França, em 1968, para acompanhar o movimento de ocupações estudantis.

De Paris, Phillips seguiu à boleia para conhecer outras partes da Europa. Em Roma, fez os seus primeiros trabalhos enquanto profissional – como paparazzo das grandes estrelas do cinema italiano. Fotografou Marcello Mastroianni, Gina Lollobrigida, Omar Sharif. Foi assim que conheceu Fellini, que o convidou para participar no filme Satyricon (1969), como figurante. “Eu era sempre a única pessoa de cor, as pessoas ficavam curiosas: quem é este tipo preto que tira fotografias?” Em Itália, passou a trabalhar regularmente para as revistas Vogue, Harper’s Bazaar e Life.

Regressava, de tempos a tempos, a Inglaterra. Imiscuiu-se na cena alternativa londrina do sexo, drogas e rock’n’roll, e foi nessa altura que teve a oportunidade de retratar Jimi Hendrix, Eric Clapton, Joan Baez, entre outros. A sua primeira exposição a solo, em Milão, aconteceu em 1972; o trabalho que tinha realizado em Notting Hill foi visto por Henri Cartier-Bresson, o seu grande ídolo da fotografia.

Em 1974, regressou definitivamente a Londres, onde não conseguiu encontrar trabalho como fotógrafo. “Ninguém acreditava que eu tivesse tirado as fotografias [que tinha no meu portfólio]”, recorda. Uma dos retratos de Muhammad Ali, com quem conviveu em Zurique poucos anos antes, em 1971, estava na parede de uma galeria em Londres e o galerista recusava acreditar que Phillips fosse o autor. “Era absurdo”, comentou ao Guardian em 2021. Discriminação racial? “Essa é uma questão que deve ser colocada às instituições”, respondeu.

Desmoralizado, Charlie Phillips esteve mesmo na condição de sem-abrigo. “Tornei-me uma espécie de indigente. Acabei a lavar pratos num café-restaurante e desisti da fotografia”, contou. Entre 1974 e 1991, não fez um único disparo. O seu trabalho foi redescoberto quando um vereador do Partido Trabalhista “tropeçou” nas suas fotografias e viu nelas valor histórico. Seguiu-se a publicação de um livro, Notting Hill in the Sixties (1991), e uma espécie de renascimento em lume brando” da sua carreira.

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Notting Hill Couple (1967); um funeral em Kensal Rise Charlie Phillips

“Sinto, às vezes, que estou a ser usado como arma de propaganda política, para mostrar uma Inglaterra multicultural. Lamento, mas não quero jogar o jogo das cores. Estou cansado de preencher quotas. Só me chamam durante o Mês da História Negra para mostrar imagens de pessoas negras e isso chateia-me.”

Charlie continua a fotografar, mas só para si. A publicação do livro Charlie Phillips — A Grassroots Legacy​, em Setembro, abrirá mais um capítulo na sua longa e aventureira vida?

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