Burro velho (não) aprende línguas

Embora o cérebro se torne menos flexível com a idade, ele ainda retém a capacidade de adaptação e mudança. E isto acontece devido a uma propriedade fascinante, designada de plasticidade cerebral.

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Quem nunca ouviu esta expressão? Pode ser usada como desculpa para não abraçarmos novos desafios na idade adulta, mas também como justificação para deixar os mais velhos de lado... O famoso idadismo, portanto. Trata-se do muito comum, mas pouco debatido, preconceito pela idade.

É um mito que as pessoas mais velhas não possam treinar e aprender novas aptidões. Embora o cérebro se torne menos flexível com a idade, ele ainda retém a capacidade de adaptação e mudança. E isto acontece devido a uma propriedade fascinante, designada de plasticidade cerebral.

É verdade que, durante a infância, o cérebro é altamente dinâmico e receptivo a novas experiências e estímulos, o que facilita a aquisição de aptidões cognitivas, linguísticas e sociais. No entanto, a plasticidade cerebral continua a desempenhar um papel crucial à medida que envelhecemos, permitindo que o cérebro se adapte a novas informações, habilidades e contextos.

A plasticidade cerebral refere-se à capacidade de o cérebro se adaptar e mudar ao longo da vida em resposta a experiências, lesões, alterações ambientais e exigências cognitivas. Esta particularidade é fundamental na aprendizagem, na memória e na recuperação após lesões. Existem dois tipos principais de plasticidade cerebral: a plasticidade sináptica e a reorganização cortical.

A plasticidade sináptica é a capacidade de as sinapses — as ligações entre os neurónios — se alterarem em resposta à atividade neuronal, quer sendo reforçadas ou sendo atenuadas. Esses processos são fundamentais na aprendizagem. A formação de novas memórias, em particular, envolve frequentemente alterações deste tipo nas sinapses. Por outro lado, a reorganização cortical refere-se à capacidade do córtex cerebral — a camada externa do cérebro, responsável por funções cognitivas complexas — de reorganizar a sua estrutura em resposta a alterações no ambiente ou a lesões. Esta reorganização pode envolver a redistribuição de funções neuronais por áreas adjacentes ou até por áreas distantes.

Após uma lesão que resulta em perda da função de uma determinada secção do córtex, outras áreas podem assumir as funções perdidas através desta reorganização cortical. Esta competência também ocorre durante a aprendizagem e o desenvolvimento. A aquisição de novas habilidades, como tocar um instrumento musical, pode levar à expansão e reorganização de áreas específicas do córtex para acomodar essas mudanças.

Quando ocorre uma lesão cerebral, como um acidente vascular cerebral (AVC) ou uma lesão traumática, as áreas do cérebro afetadas podem perder a sua função, como consequência da perda de células nervosas. No entanto, a plasticidade cerebral permite que o cérebro se reorganize e se adapte para compensar essas perdas. Por exemplo, se uma área responsável pelo movimento de um membro é danificada, outras áreas do cérebro podem assumir essa função, permitindo que a pessoa recupere parte do controlo motor.

É, aliás, com base nesta capacidade que funcionam as terapias para promover a recuperação após uma lesão cerebral. Podem incluir exercícios físicos, terapias ocupacionais, fisioterapia e outras intervenções direcionadas para estimular a reorganização neuronal. Por exemplo, em pacientes com AVC, a terapia de movimento repetitivo pode ajudar a reforçar as conexões neuronais para melhorar o controlo motor do membro afetado. Uma abordagem inovadora é a estimulação cerebral não invasiva, que utiliza técnicas como a estimulação magnética transcraniana (EMT) e a estimulação elétrica transcraniana (EET) para modular a atividade cerebral e facilitar a recuperação. A realidade virtual e os jogos cognitivos estão também a ser muito testados e cada vez mais utilizados na reabilitação de lesões cerebrais. Estas tecnologias proporcionam ambientes imersivos e desafios interativos que estimulam diversas funções cognitivas e motoras.

Manter-se cognitivamente ativo é crucial na prevenção da demência. O envolvimento em atividades intelectualmente estimulantes, como aprender novas línguas, solucionar quebra-cabeças e manter uma vida social ativa, pode ajudar a manter e até melhorar a plasticidade cerebral, reduzindo o risco de declínio cognitivo.

A plasticidade cerebral é uma característica notável que permite a adaptação contínua da atividade do cérebro e a recuperação ao longo da vida. Compreender e aproveitar essa capacidade pode ter importantes implicações na aprendizagem, na reabilitação de lesões cerebrais e na manutenção da saúde cognitiva em todas as idades. Portanto, acabaram-se as desculpas e as expressões infelizes.

Sobre isso mesmo detalha o livro que recomendo este mês. Um tempo sem idade, da Maria João Valente Rosa, que nos desafia a deixar de encarar a velhice como um inconveniente social, e a não usar apenas a idade como marca para determinar o posicionamento dos indivíduos adultos, de qualquer idade, no mercado de trabalho e na sociedade. Acompanha a fabulosa música ‘O elixir da eterna juventude’ do incomparável Sérgio Godinho.

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