Primeiro, estupefacção. Faça-se um breve resumo das lideranças nacionais que uma democracia de 330 milhões de habitantes e mais de 200 anos gerou nos últimos 30 e poucos. Duas dinastias: os Bush (George HW e George W, pai e filho, Presidentes; Jeb, filho do primeiro e irmão do segundo, candidato) e os Clinton (Bill, marido, Presidente; Hillary, mulher, candidata).

Duas cartas fora do baralho, mas também elas com pretensões aristocráticas: Barack Obama, cujo "vice" Joe Biden chegou a Presidente e cuja mulher, Michelle Obama, aparece recorrentemente nas sondagens como nome presidenciável; e Donald Trump, que entre 2016 e 2020 fez da Casa Branca um feudo familiar e que desde então transformou o Partido Republicano num culto à sua imagem.

Entre pelo menos 200 e muitos milhões de americanos (subtrai-se quem tem menos de 35 anos, quem não nasceu em solo americano e quem não é residente há pelo menos 14 anos), foi isto que se arranjou para liderar o país: duas famílias, um clã e um culto. Não é uma jovem democracia pós-ditatorial, nem uma instável republiqueta em vias de desenvolvimento, nem um pequeno município ou região nas mãos de um figurão local - são os Estados Unidos da América. Mas não havia mais ninguém.

Depois, o risco. Anos, décadas de Pedro e o Lobo, de the stakes could not be higher, de alarme exagerado sobre as consequências da vitória de um adversário, natural e decorrente de alternância democrática, fizeram do americano médio, que está mais preocupado com o dinheiro no bolso do que com o destino do regime, um céptico.

Mas o ano de 2024 será mesmo diferente. Não há memória viva de um candidato à presidência dos Estados Unidos que admita querer ser "ditador por um dia", ou que traga na pasta um esboço de programa de Governo que inclui, entre outras propostas, o saneamento político de milhares de funcionários e a detenção e deportação de milhões de estrangeiros. Uma "segunda Revolução Americana", como descreve Kevin Roberts, presidente da Heritage Foundation, o think tank ultraconservador que desenhou o dito programa, o Projecto 2025.

Prosseguirá também a captura ideológica dos órgãos de soberania, já flagrante no caso do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que vê hoje o Presidente como uma figura parcialmente acima da lei. Não se espere dali, na sua composição actual, qualquer escrutínio sobre o poder presidencial numa segunda Administração Trump.

Perante isto, uma aposta de alto risco. O desenho do sistema eleitoral norte-americano torna a vitória no voto popular irrelevante se não for acompanhada pela vitória no mapa do colégio eleitoral. Com a maioria dos estados norte-americanos tradicionalmente "no bolso" de um ou de outro partido, sem margem para surpresas, a eleição decide-se num punhado de estados como a Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Ohio, Nevada, Arizona, Carolina do Norte ou a Georgia. A esta hora, a 4 de Julho, dia da Independência, Trump lidera as sondagens em todos estes estados decisivos e ainda a nível nacional.

Virar estes números a quatro meses das eleições seria um esforço hercúleo, ainda que não impossível, para qualquer candidato. Para Joe Biden, é inverosímil.

A questão não é a idade em si. Ter 82 anos não é um atestado de invalidez. É a mesma idade de Bernie Sanders, que prossegue lúcido e combativo no Senado. São menos dois anos que os 84 de Nancy Pelosi, ainda uma figura de topo dos democratas. Ou ainda menos que os 87 a que Ruth Bader Ginsburg chegou no Supremo, ou mesmo os 100 com que Henry Kissinger, não obstante os evidentes problemas físicos, continuava a assinar artigos e a conceder entrevistas.

Mas os 82 anos de Biden não são os 78 com que concorreu ao primeiro mandato na Casa Branca. Se os tropeções discursivos já estavam lá (Biden sempre foi gago, o que não é pecado), os episódios de aparente confusão mental, a voz trémula e a rigidez física são novidade. Só com muita benevolência ou desonestidade se pode negar o evidente declínio do Presidente dos Estados Unidos ao longo do seu mandato.

Quem nunca deixará de votar em Biden dirá que um Presidente diminuído é sempre melhor que Trump, e que este não tem o intelecto, a competência ou a idoneidade do adversário democrata. Tal como quem nunca deixará de votar em Trump é indiferente aos problemas legais do ex-Presidente e às acusações de incompetência, boçalidade e autoritarismo.

Só que não é aí que se decide a eleição, entre os indefectíveis. É na fina margem de independentes, naquela meia dúzia de estados, que podem votar num ou noutro candidato. É nas margens menos consolidadas dos dois eleitorados, que podem optar entre o voto, a abstenção e o protesto.

Ao problema que os democratas dizem por estes dias que não existe, Biden soma outros. A percepção de um apoio incondicional da sua Administração a Israel no conflito de Gaza arrisca desmobilizar parte das franjas mais jovens e mais à esquerda do seu eleitorado, bem como os americanos muçulmanos ou de origem árabe, negligenciáveis no plano nacional mas não no Michigan, um dos estados decisivos. Mesmo que a sua abstenção ou voto de protesto acabe por beneficiar um candidato islamofóbico.

Tal como a percepção de que o bom momento da economia norte-americana não tem beneficiado o cidadão comum. Sim, a economia cresce acima das expectativas, o desemprego está em mínimos históricos, a inflação está controlada e a bolsa, a que estão indexadas as pensões, continua a subir. Mas sim, ir ao supermercado hoje continua a custar mais do que em 2020 e comprar ou arrendar casa é virtualmente impossível numa crescente área do país, mesmo com um bom salário. Há os grandes números da economia e há o dinheiro no bolso de quem vota.

As eleições estarão, então, nas mãos de uns milhares de independentes, ou de indecisos, ou de ressentidos em dois, três ou sete estados. E a sua escolha poderá gerar perplexidade em quem não compreende que o eleitorado não é necessariamente justo, racional, benevolente ou sequer bem informado. Mas é nesse mundo real, não no ideal, que o candidato dos democratas tem quatro meses para dar a volta às sondagens.

Esse candidato é Joe Biden. Mas não se arranjava mais ninguém?

P.S.: Cresce a indignação, no campo democrata, com a multiplicação de editoriais e artigos de opinião na imprensa americana a pedir o abandono de Biden. Interpretam-nos, erradamente, como declarações de apoio a Trump e não como apelos à construção de uma candidatura com maior probabilidade de derrotar o republicano. Ou exigem uma tomada de posição semelhante em relação a Trump, ou pelo menos a enunciação das dezenas de motivos pelos quais o republicano não deve voltar à Casa Branca. Em que planeta viverá quem imagina Trump a abrir o New York Times, a ter um rebate de consciência e a desistir da sua candidatura? Em que galáxia habitará quem pensa que o eleitorado trumpista será sensível agora à informação que ignorou ou desvalorizou deliberadamente ao longo dos últimos nove anos? É tempo de descer à terra.