África do Sul: Governo de união num país com sinais de desagregação
Ramaphosa juntou sete partidos num executivo de 32 ministros que é um puzzle ideológico pró-mercado. Mas o albergue espanhol cozinhado pelo ANC soltou as vozes dos que pedem a autodeterminação branca.
O novo Governo da África do Sul tem mais ministérios (32) do que o anterior (30), quando a promessa do Presidente Cyril Ramaphosa ia precisamente no sentido de reduzir a máquina e não a aumentar para este segundo mandato. O engordar do executivo prendeu-se com a necessidade do Congresso Nacional Africano (ANC) de acomodar as exigências do seu principal parceiro de coligação, a Aliança Democrática (DA), e diluir a sua força dentro do Governo, alargando-o a mais cinco partidos.
As conversações difíceis para formar este Governo de Unidade Nacional (GNU, na sigla em inglês) foram consideradas uma demonstração da capacidade política de Ramaphosa e dos seus dotes de negociador, que permitiu ao ANC ficar com 60% dos lugares no executivo (apesar dos 40% de votos) e de entregar apenas 20% à DA, quando esta exigira 30%. O ANC também guardou para si as pastas económicas, cedendo apenas o ministério da Agricultura ao líder da DA, John Steenhuisen.
Por mais que seja considerado um sucesso de negociação do Presidente e da sua equipa, depois de o ANC ter saído fragilizado de uma eleição em que perdeu 71 deputados e a maioria na Assembleia Nacional, não se pode escamotear que este é o executivo que entregou um ministério (Serviços Correccionais) a um partido da minoria branca que impôs como condição para o seu apoio ao GNU a manutenção do estatuto segregacionista de Orânia, uma vila só para brancos africânderes.
Pieter Groenewald, o líder da Frente Libertária Mais (VF+ ou FF+), partido político nacionalista pró-africânder, que apoia a autodeterminação de minorias no país, sobretudo dos brancos, nomeadamente a independência da província de Cabo Ocidental, será ministro dos Serviços Correccionais. Dir-se-á que é um pequeno sacrifício secundário do ANC em prol da necessidade política imediata de estabilidade, mas não deixa de abrir a porta às “orientações políticas do FF Plus”, cujo “único objectivo” é “reconstruir a África do Sul e de a colocar de novo no bom caminho”.
Com o ganhar de força das ideias segregacionistas na África do Sul, de autodeterminação da minoria branca, quando o “Estado unitário [sul africano] está em processo de separação” – como escreveu Phil Craig, o líder do Partido do Referendo no Cape Times –, há sul-africanos preocupados com a inclusão de um ministro que acusa o ANC de criar um “novo apartheid”, defende o fim da “acção afirmativa” (que pretende corrigir a falta de oportunidades para negros, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no acesso ao mercado de trabalho) e que considera o ensino dos horrores cometidos pelo regime segregacionista branco como incitação à violência.
Mesmo que a visão de uma África do Sul que, 30 anos depois do fim do apartheid, estigmatiza os brancos em geral e os descendentes dos huguenotes holandeses e franceses que arribaram às paragens austrais do continente africano no século XVII em particular seja hoje suficientemente partilhada para chegar aos meios de comunicação social, a realidade concreta dos números é bem diferente.
De acordo com um estudo de 2017 do Departamento de Desenvolvimento Rural e Reforma Agrária sul-africano, os brancos sul-africanos eram proprietários de 72% da terra nas mãos de privados, apesar de serem menos de 10% da população. Só 15% das terras estavam nas mãos de negros, sendo que 65% dos negros sul-africanos vivem na mais abjecta pobreza contra apenas 15% dos brancos.
Passados 69 anos (26 de Junho) da adopção oficial pelo ANC da sua “Carta da Liberdade”, escreve no site do ACCORD Paul Natulya, investigador do Africa Centre for Strategic Studies, esse “ambicioso programa para abordar e atenuar as fontes históricas de desigualdade, onde a terra, a habitação e a educação gratuita continuam a ser fundamentais” permanece sem alcançar. “E muitos concordam que estes assuntos não podem ser adiados indefinidamente e devem ser enfrentados para evitar o mesmo caminho de outros países.”
Só que como Ramaphosa sublinhou várias vezes no seu discurso de tomada de posse no dia 19 de Junho, esse é um programa “radical” que assusta os mercados e afecta a economia. “Por outras palavras, manter a estabilidade do mercado e a confiança dos investidores e criar uma sociedade mais igualitária e mais justa são apresentadas como opções mutuamente exclusivas”, explica Natulya.
Por isso, há quem defenda, como o activista Roshan Jainath no diário The Witness, que “o ANC e os seus parceiros de governo devem reconstruir a confiança” dos sul-africanos, numa altura em que “o populismo procura dividir” a sociedade. Jainath, como outros, sugerem a realização de uma nova Convenção para uma África do Sul Democrática (Codesa). “A Codesa original, no início da década de 1990, foi crucial na transição do apartheid para a democracia. Uma segunda Codesa poderia ter como objectivo enfrentar os complexos desafios actuais e orientar a África do Sul para a prosperidade partilhada e a coesão social.”