Ary dos Santos e Natália Correia sobem juntos ao palco pela mão de Adriana Queiroz

O Beijo do Poeta, livro-disco de Adriana Queiroz, é apresentado esta terça-feira em Lisboa com encenação de Tiago Torres da Silva. No Teatro da Trindade, às 21h.

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Adriana Queiroz num dos videoclipes de O Beijo do Poeta DR
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Até aqui, todos os discos que conhecemos de Adriana Queiroz (Ariadne, Tempo, Mulheres do Sul) tinham nascido primeiro como espectáculo. Desta vez, porém, o que era para ser apenas um disco, ganhou a forma de espectáculo, com o qual será apresentado esta terça-feira à noite (21h) no palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, com encenação de Tiago Torres da Silva. Trata-se de O Beijo do Poeta, trabalho musical mas também dramatúrgico que vive do cruzamento da poesia (e das pessoas) de Ary dos Santos e de Natália Correia.

A ideia, diz Adriana Queiroz ao PÚBLICO, já lhe surgiu há alguns anos: “Começou antes da pandemia, ainda estava com as Mulheres do Sul, com aquela coisa do que é a sexualidade, o género, de repente estava a ler Natália, estava a ler Ary e comecei a pensar que aqueles seres tão sexuais eram quase assexuados. E isso deu-me uma vontade de fazer um trabalho sobre aquelas duas pessoas.” Até que lhe deram a ler o artigo que Natália Correia escreveu quando Ary dos Santos morreu. “Amavam-se e odiavam-se. É um artigo em que ela lhe pede imensa desculpa por ter andado sempre atrás dele a dizer que não devia fazer poesia menor, que não devia fazer letras [para canções]. Pede-lhe desculpa exactamente pelo grande poeta que ele era e também por, sendo ela deputada, ter o amor do povo, e que ele não o tinha se não fizesse canções. E eu achei isso lindíssimo.”

O beijo da fotografia

A intenção de Adriana não teria ficado completa se não lhe mostrassem uma fotografia de Natália a dar um beijo a Ary. “Achei que era o beijo do poeta. Daí o título. Porque é um beijo que a Natália dá ao Ary mas é também um beijo que o Ary dá à Natália. Eu andava à volta de canções do Ary que para mim seriam um repertório extraordinário, porque as adoro, mas cheguei à conclusão que teria de arranjar originais de cada um.”

Então pôs-se a escolher poemas e desafiou um grupo de compositores de várias áreas a musicá-los. Eram seis, acabaram por ficar oito: Fred Martins, Luís Barrigas, Isabel Rato, João Paulo Soares, Catarina Miranda (Emmy Curl), Felipe Caneca e os Couple Coffee Norton Daiello e Luanda Cozetti, que preferiram musicar cada um a sua canção.

Um exemplo, entre os 12 que compõem este disco: A cidade. Conhecemos este poema já musicado por José Afonso. Fecha o álbum Contos Velhos Rumos Novos, de 1969, ano em que foi publicado o livro de poemas onde ele se insere, Insofrimento In Sofrimento. Um livro que abre com esta dedicatória de Ary: “Para Natália Correia – à coragem da sua inteligência, da sua poesia, da sua amizade.” Ora a versão incluída no disco de Adriana, com música de Norton Daiello, é bem diferente. Abre com o ruído do trânsito na cidade e fecha com o som de automóveis a chocarem. Há uma razão para isso, explica Adriana:

“Essa foi a primeira letra que escolhi, porque eu vim da cidade. Lancei as Mulheres do Sul a 8 de Março e no dia 11 Portugal fechou-se em pandemia. Nesses três meses, já tinha arranjado uma casa no campo, estive a empacotar tudo e num fim-de-semana saí da cidade. Assim que cheguei aqui [ao campo] escolhi esse poema, porque era aquilo que eu sentia sobre a cidade. Era aquilo que eu tinha deixado ficar para trás. Não vale a pena sermos negativos, mas a verdade é que tudo isto, a cidade e a civilização, está muito feio.”

Do disco ao palco

“Entretanto, durante os anos da pandemia, fui inventado um percurso de como fazer este disco, que não era para ser espectáculo”, diz Adriana. “E funciona quase como se o Ary lançasse um tema e a Natália respondesse com outro. É um diálogo epistolar, de um para o outro.” Quando Adriana enviou as músicas do disco a Tiago Torres da Silva, poeta, autor de canções e textos teatrais e encenador, ele respondeu-lhe com um texto, que acabou por entrar no livro-disco: “Ele apaixonou-se pelas músicas e pela ideia e fez-me um texto, ‘O beijo da cantora’, absolutamente maravilhoso. E começou a dizer-me que isto tinha de ser um espectáculo. Então, pela primeira vez, pedi a alguém (a ele) não só para fazer a dramaturgia comigo, como para encenar este espectáculo comigo. Porque é completamente diferente do disco: passa por três momentos diferentes, eles ainda boémios na cidade, de repente o lado dela e a resposta dele… Tem sido maravilhoso trabalhar com o Tiago.”

Tiago Torres da Silva, pelo seu lado, explica ao PÚBLICO como foi encenar este trabalho: “Quando se entra num projecto assim, tem de se compreender o projecto”, assegura. “Não é como encenar teatro. E este espectáculo é de música, mas também é de teatro, é de dança, é de tudo, e quando se faz um trabalho assim tem de se compreender o artista que está à nossa frente a tentar trazer, ao olhar de fora, o melhor desse artista para a cena.”

O mais interessante, para Tiago, neste projecto foi o facto de ir buscar “duas pessoas como o Ary e a Natália, pessoas desabridas, destemidas, exageradas (fazem muita falta, hoje em dia, pessoas desse quilate), e trazer essa energia para a realidade do que é ser Adriana Queiroz”. E isso, para Tiago, tem uma característica muito peculiar: “Quando a Adriana se expressa como artista em palco, ela não é cantora, não é bailarina, ela é todo. Ela não canta com a voz, canta com tudo, com todo o movimento, e acho isso muito interessante. E ao trazermos para canções textos do Ary e da Natália que não são escritos para canções, podemos ir buscar mais essa ideia de liberdade que eles defendiam com unhas e dentes e que é a linha que atravessa o espectáculo todo. Obviamente, que a isto não é alheio o facto de estarmos a celebrar 50 anos do 25 de Abril, nem estarmos a ver esta onda de extrema-direita em ascensão no mundo inteiro. A ideia foi mesmo fazer um espectáculo que fosse testemunho do nosso tempo, apesar de aproveitar palavras escritas noutro tempo.”

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