Presidente da Anacom: “O ideal é que as pessoas reclamem” contra as plataformas digitais

Regulamento dos serviços digitais está em vigor desde Fevereiro e ainda só foram apresentadas 12 queixas. Sandra Maximiano diz que é preciso sensibilizar consumidores para existência de novas regras.

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Governo ainda tem de aprovar proposta de financiamento e de modelo sancionatório de suporte ao cumprimento do regulamento Phil Noble
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O regulamento europeu dos serviços digitais (RSD), que obriga as grandes plataformas digitais a monitorizar e remover conteúdos problemáticos, como informações falsas, discursos de ódio, conteúdos que preconizam a violência de género ou põem em risco os menores, por exemplo, entrou em vigor em Fevereiro.

Cabe à Anacom, na qualidade de coordenador dos serviços digitais em Portugal, garantir o cumprimento das novas normas e articular a acção de dezenas de entidades com responsabilidades nesta matéria, mas a presidente da entidade reguladora, Sandra Maximiano, frisa que é importante que os cidadãos/consumidores estejam informados do seu próprio papel nestas matérias, incluindo a denúncia de conteúdos ilegais ou desinformação.

Até à data, a Anacom recebeu 12 queixas no âmbito do RSD, um número “relativamente baixo” que a reguladora atribui precisamente ao facto de as pessoas ainda estarem “pouco sensibilizadas” para estas questões. “O ideal é que as pessoas reclamem e que tornem estas plataformas accountable [que assumam a responsabilidade], como outras empresas são”, afirmou a presidente da Anacom num encontro com jornalistas, esta terça-feira.

Em causa estão grandes empresas internacionais de entretenimento ou comércio electrónico, como Netflix, Instagram, LinkedIn, Facebook, Amazon ou Google, mas também empresas portuguesas, como Portal da Queixa, Worten ou Idealista.

Em Portugal deverão ser “centenas de pequenas e médias empresas”, mas a Anacom tenciona fazer em breve um estudo para identificar as empresas portuguesas abrangidas pela aplicação do regulamento e também lançar campanhas de informação sobre estes assuntos.

“Hoje o consumidor está mais protegido”, assegura Sandra Maximiano. No passado, se uma pessoa visse removido um conteúdo ou ficasse com a conta bloqueada numa qualquer rede social, poderia não conseguir obter resposta da empresa, ou então receber respostas tipificadas, que acabavam num beco sem saída, exemplificou.

“Hoje, existem entidades que podem avaliar e intervir”, mas o primeiro passo deve ser reclamar junto das plataformas, que passaram a estar obrigadas a terem “formas de as pessoas as contactarem e reclamarem e têm de lhes dar resposta”. Algumas das queixas que a Anacom já recebeu dizem precisamente “a bloqueios de conta, inexistência de canais de comunicação ou de reporte de reclamações”.

Quando a queixa diz respeito a uma plataforma/empresa com sede em Portugal, a tramitação do processo faz-se cá. Se for contra uma empresa com sede no estrangeiro, então a Anacom remete-a para o coordenador do Estado-membro respectivo.

O director-geral da Anacom, Luís Alexandre Correia, destacou que “a Comissão Europeia está muito empenhada em que existam consequências para as plataformas” se a lei não for cumprida. Ainda recentemente, no caso das eleições europeias, houve um enfoque muito grande no sentido de evitar qualquer tipo de desinformação ou manipulação de conteúdos e a Anacom esteve a trabalhar de perto com a Comissão Nacional de Eleições, exemplificou.

A nível europeu, até à data de 3 de Junho, na lista dos grandes motores de busca (VLOSE na sigla em inglês) ou grandes plataformas digitais (VLOP) sujeitos a obrigações de diligência e transparência pelo RSD estavam: Alibaba, AliExpress, Amazon Store, Apple Store, Booking, Facebook, Google Play, Google Maps, Google Shopping, Instagram, LinkedIn, Pinterest, Snapchat, Tik Tok, X (Twitter), Wikipedia, You Tube, Zalando, Bing, Google Search, Pornhub, Stripchat, Xvideos, Shein e Temu.

O critério para serem considerados de grande dimensão é cumprido quando o número de destinatários activos que utilizem o serviço pelo menos uma vez, em média, ao longo de um período de seis meses, ultrapassa os 45 milhões de destinatários (ou seja, 10% da população da UE).

Estas empresas têm obrigação de avaliar, monitorizar e mitigar os riscos existentes nas suas plataformas no que diz respeito à publicação de conteúdos ilegais e desinformação, ou proibir determinadas publicações ou publicidades que ponham em causa a protecção de menores, por exemplo.

A par das obrigações acrescidas de transparência das próprias plataformas, haverá um sistema de vigilância dotado de entidades certificadas capazes de monitorizar e denunciar os conteúdos problemáticos, os chamados sinalizadores de confiança.

Até à data já houve quatro candidaturas (sujeitas à aprovação da Anacom), uma delas do Media Lab, do ISCTE, mas outras entidades, como a Associação de Apoio à Vítima ou a Comissão de Protecção de Menores, poderiam desempenhar essas funções, exemplifica a presidente da Anacom.

Fiscalizar e sancionar

Em Abril, a Comissão Europeia abriu um processo de infracção contra Portugal por ainda não terem sido atribuídas à Anacom as competências necessárias para fazer cumprir o RSD, nomeadamente o regime sancionatório que permita aplicar coimas às empresas infractoras, em função do seu volume de negócios.

A proposta de regime sancionatório, bem como de modelo de financiamento deste ecossistema de supervisão e fiscalização consta de uma proposta de diploma de execução que foi entregue pela Anacom ao Governo e onde o regulador se articulou com dezenas de entidades consideradas relevantes para fazer um trabalho de conformação do quadro jurídico nacional com o RSD (nomeadamente, sinalizar as alterações legislativas necessárias para garantir essa compatibilização do direito).

Além da Anacom como entidade coordenadora, o Governo seleccionou como outras entidades competentes para o RSD a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em matéria de comunicação social e outros conteúdos mediáticos, e a Inspecção-geral das Actividades Culturais (IGAC), em matéria de direitos de autor e dos direitos conexos.

Sob coordenação da Anacom, criou-se um grupo de trabalho que, em 90 dias, identificou outras entidades relevantes para o cumprimento deste regulamento em Portugal (32 no total), que incluem, por exemplo, o Infarmed, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) ou o Ministério Público, por exemplo.

Todo este sistema de suporte ao cumprimento do RSD que foi proposto pela Anacom (incluindo o modelo de cooperação entre entidades) terá agora de passar pelo crivo do Governo e depois seguir o percurso legislativo escolhido pelo executivo, o que não impede a Anacom de estar já a trabalhar no cumprimento do RSD (em vigor desde Fevereiro) e a tentar “sensibilizar a Comissão Europeia” para o facto de Portugal estar a cumprir a lei, de modo a evitar que o processo de infracção culmine com uma multa, afirmou Sandra Maximiano.

Luís Alexandre Correia, que coordena o grupo de trabalho liderado pela Anacom e é responsável pelo RSD na entidade reguladora, revelou que neste momento trabalham nesta área cerca de oito pessoas, das quais apenas quatro a tempo inteiro, e que o ideal seria começar com 15 a 20 pessoas, uma vez que o diploma fosse aprovado, e com reforço em perfis vocacionados especialmente para o digital, como cientistas e analistas de dados e especialistas em tecnologias de informação.

“Este é um instrumento de regulamentação que permite actuar, agora se é eficaz ou não, vamos ver”, disse Luís Alexandre Correia, frisando que todo o ecossistema digital sofre alterações a um ritmo “vertiginoso” e que realidades como a inteligência artificial, para as quais a Anacom terá de criar competências específicas, tornam a tarefa ainda mais difícil.

Mas o director-geral adjunto da Anacom também frisou que a entidade reguladora tenciona utilizar a tecnologia, incluindo a inteligência artificial, a seu favor nesta tarefa.

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