Comissão de inquérito às “gémeas”: Daniela e os hunos

O que o Chega quer – mais do que investigar a eventual participação do Presidente, do filho, do anterior governo – é provar que “os imigrantes vêm para aqui roubar os nossos medicamentos”.

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Perdemos toda a humanidade. A audição parlamentar de Daniela Martins, a mãe das gémeas alegadamente favorecidas na toma de um medicamento no Hospital de Santa Maria, por interferência política, foi das coisas mais degradantes do funcionamento da Assembleia da República a que todos assistimos.

As filhas de Daniela Martins nasceram com uma doença raríssima. Daniela fez tudo para salvar as filhas e recorreu a toda a gente que pôde. Fez o que faria qualquer mãe normal numa situação idêntica – moveu mundos e fundos para conseguir que as suas filhas conseguissem ter alguma qualidade de vida. Quando não se percebe isto, a única conclusão possível é que deitámos ao lixo todos os princípios básicos de humanidade.

O interrogatório a que Daniela Martins foi sujeita por André Ventura mostrou a total falta de capacidade de se pôr no lugar do outro de que padece o líder do Chega e o resto do partido. Já o sabíamos, isto não é novidade. É assim com os imigrantes, com quem denuncia o racismo, com as mulheres. Agora, aparece uma "brasileira" alegadamente favorecida a mando do chefe de Estado.

O que o Chega quer neste caso – mais do que denunciar a eventual participação do Presidente da República, do seu filho, do anterior Governo, na alegada “cunha” junto do Hospital de Santa Maria – é provar que “os imigrantes vêm para aqui roubar os nossos medicamentos”. Aliás, na sexta-feira, na CNN, o deputado Pedro Frazão dizia tratar-se de um caso de “imigração de saúde”. Tudo isto apesar de a mãe ser portuguesa e de as gémeas serem portuguesas.

Aquela mãe nunca devia ter sido ouvida naqueles termos e a sessão nunca devia ter ocorrido à porta aberta. É evidente que o advogado da “vítima” consentiu e só ameaçou acabar com o espectáculo quando Ventura quis voltar a passar o vídeo que expunha a mãe.

O “desconforto” expresso pelos outros deputados foi tímido e demasiado pobre. O Chega está a contaminar toda a Assembleia da República e os outros partidos. Se não fosse o advogado de Daniela, a tortura da mãe iria ao rubro. Ventura recuou, sob a ameaça de a comissão passar a funcionar à porta fechada. Ventura não está a trabalhar para a descoberta da verdade, mas para o espectáculo sórdido. A mãe não está sob suspeita. Não é culpada. Fez o que todas as mães dignas desse nome fariam. O problema aqui não é pedir cunhas.

O problema é saber como é que se chega ao Serviço Nacional de Saúde sem cunhas ao mais alto nível. Daniela Martins objectivamente não quis “queimar” na comissão de inquérito quem a ajudou. Percebe-se. Está em causa a doença das filhas. Quem não entende isto está monstrificado.

Devia o filho do Presidente da República recorrer ao pai, apesar de a intenção ser nobre? Não devia. Já teve a sua punição – passou a ser o “dr. Nuno”, hoje repudiado pelo pai, um caso de outro género de desumanidade que é quase impossível de compreender. Nuno Rebelo de Sousa é hoje arguido no caso que decorre na justiça. Devia Marcelo Rebelo de Sousa mandar os seus assessores contactarem o Hospital de Santa Maria e reunir-se com Lacerda Sales, hoje também arguido? Não, apesar de a intenção ser nobre. Devia Lacerda Sales receber Nuno Rebelo de Sousa e mandar alguém telefonar para marcar uma consulta no Santa Maria? Não, apesar de a intenção ser nobre.

O que aqui está em causa é qual a possibilidade de chegar ao Serviço Nacional de Saúde sem cunhas. Há uns tempos, li a entrevista de um médico, cujo nome agora não me ocorre, a dizer que a vida dele era andar “a meter pessoas dentro do sistema”. Aparentemente, Presidente, secretário de Estado, etc., não estão sozinhos. O Serviço Nacional de Saúde às vezes precisa de “empurrões”? Porquê? O que se passa? Isto era um bom tema para uma Comissão Parlamentar de Inquérito, mas não vai acontecer.

Se existe um tumor no SNS, onde quem tem cunhas é favorecido, isso tem de ser enfrentado. Numa comissão parlamentar de inquérito desse género, seria possível ouvir pessoas psicologicamente menos debilitadas que a mãe de duas meninas com uma doença raríssima.

Mas o espectáculo, para Ventura, não seria nunca tão bom, pois não? Quanto à questão da eventual cunha no Hospital de Santa Maria, a justiça está a investigar e constituiu arguidos. Depois do que se passou na sexta-feira na Assembleia, os outros partidos faziam melhor em abandonar a comissão. Investiguem antes, como o PCP propôs, a privatização da ANA – Aeroportos, que foi contestada em Janeiro por uma auditoria do Tribunal de Contas. Mas não é tão sexy, pois não? Se nem o PS quer mexer no assunto...

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