Reequipar a política nacional com meios de Governo

Cresceu significativamente a votação nas forças partidárias que elegeram deputados ao Parlamento Europeu e são avessas à construção europeia, tal como configurada nos seus tratatados essenciais.

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O valor da abstenção nas eleições europeias de 2024 em Portugal é alarmante e revelador de um risco severo para o futuro da UE e do euro. Votaram 3.948.531 dos 10.811.251 inscritos, sendo que em 2019, ano em que se registou a maior abstenção, votaram 3.314.118 dos 10.767.228 inscritos.

Deixa-se iludir quem aceitar a ideia de que a redução do valor da abstenção, nas eleições europeias de 2024, significa um melhoramento do sentimento em relação à UE, ou do consentimento do statu quo, por a abstenção ter sido inferior à ocorrida nas eleições europeias dos últimos 20 anos.

Basta para demonstrar esta ilusão referir que cresceu significativamente a votação nas forças partidárias, com presença na Assembleia da República, que elegeram deputados ao Parlamento Europeu que são avessas à construção europeia tal como configurada no seu núcleo essencial, i.e., Tratado de Lisboa, Tratado Orçamental, Pacto de Estabilidade e Crescimento. É facto que a votação nestas forças partidárias cresceu em 2024 para 717,413 votos, em face dos 553,656 votos, expressos em 2019. Desagregando esta componente da votação apuram-se os seguintes resultados: Chega, 9,79% [386.646 votos = 2 deputados], BE, 4,26%, [168.036 votos = 1 deputado] e PCP-PEV, 4,12% [162.731 votos = 1 deputado]. Resulta a esta luz que não só não existiu um melhoramento em 2024, como pioraram até os resultados em face dos de 2019, posto que cresceu em votos e no espectro político.

Faço notar dois aspetos nos resultados que desagreguei. Um aspeto respeita à conexão íntima existente entre as eleições europeias e a perenidade das forças partidárias com representação parlamentar, ao contrário do que por vezes é afirmado. O outro aspeto é que as eleições europeias de 2024 – em linha com as legislativas de março – reiteram que as eleições legislativas de 2019 iniciaram uma trajetória de pôr fora da casca um novo Portugal institucional.

Faço igualmente notar que entre os dois aspetos aludidos existe uma interligação que confirma a preocupante afirmação na sociedade portuguesa de uma constante de desintermediação partidária. Isto é visível no definhamento inexorável das forças partidárias, em especial daquelas com representação parlamentar entre 1975 e 2019 de que o CDS foi exemplo primeiro , em favor do crescente protagonismo da rua, das redes sociais, do salão, da radicalização e do populismo na reivindicação sociopolítica de que são exemplos Stop!, ativistas climáticos, coletivos, manifesto dos 50, e outros entes. Esta interligação confirma igualmente que:

  1. A mensagem de fundo das legislativas de 2019 foi a afirmação de uma nova era político-social, entreabrindo uma mudança estrutural, como ao tempo advoguei, não redutível ao “conceito de pequena reforma”, relembrando aos eleitos que a Casa da Democracia, rectius Assembleia da República, não tem lugares marcados.
  2. O Chega não é um fenómeno passageiro, menos ainda o é o brilho retórico de Ventura ou o ímpeto da atitude de falar à Chega com trampolim nas abundantes ignomínias éticas na coisa pública, em parte alimentadas pela displicência irresponsável com que tantas vezes são encarados pelos seus opositores, editores e circunstantes televisionados a coberto da dignidade de comentador.
  3. O efeito dos challengers Chega, Iniciativa Liberal, Livre, PAN, no statu quo partidário pré-2019, foi acelerador da mudança, em especial por via do aumento do controlo e fiscalização, desde logo do nível de especialização temática no quotidiano político na Assembleia da República.

Não é verdade que tudo aquilo que mencionei constitui manifestação de que uma “grande parte das instituições já não serão representativas das aspirações, necessidades e preferências das bases sociais que estão na sua razão de existir”, pedra angular sobre a qual explanei o meu pensamento na entrevista dada ao PÚBLICO em 24/2/.2019, antes das eleições legislativas de 6/10/2019?

Não é verdade que a linha prevalecente na construção europeia relegou a coesão económica e social para lugar secundário, primordialmente devido a um formato de euro que engessou a governação dos países nas decisões do BCE sobre inflação, não poucas vezes malogradas, bem assim em insensíveis limites de despesa pública, gesso este responsável pelo comprovado declínio europeu nas últimas duas décadas?

Não é verdade que a regulação europeia promove crescentemente economias de escala, harmonização de padrões de qualidade e taxonomias, tantas vezes avessas à realidade nacional e impossíveis de cumprir pelas PME e microempresas, forçando-as à saída do mercado, em favor do avanço de grandes conglomerados, da homogeneização de produtos, deglutindo paulatinamente a liberdade empresarial de ser e estar e o domínio dos grupos empresários portugueses em zonas nevrálgicas da economia portuguesa, desde logo por falta de cabedais para cumprir tais exigências?

Não é verdade que a dinâmica internacional de my country first, de economia de guerra, de protecionismo, de retaliação comercial, de desafios climáticos, migratórios, ou o impacto das inovações tecnológicas na liberdade e segurança de pessoas e sociedades, da criminalidade, do disparo dos comportamentos aditivos agravaram os sentimentos de incerteza e de angústia de existir nas populações requerendo maior proximidade e ação da política nacional?

Não estão as situações que aludi na origem de um distanciamento entre a política nacional e as pessoas que é resultado de não se dispor, no plano nacional, dos meios de governo e de decisão à altura das necessidades das comunidades, habitação, saúde, justiça, educação etc.? E que este distanciamento é o responsável principal pela perda de confiança dos cidadãos nos agentes políticos, nas instituições públicas e no ideal europeu? Assim favorecendo a abstenção eleitoral, o crescimento do populismo, do autoritarismo e de novos fascismos que na atual rota entreabre o colapso do euro e da UE, em linha com o que pretendem centros de poder emergentes no Parlamento Europeu e estados beligerantes, Rússia em especial?

Sendo verdade, não é hora de suscitar em Bruxelas e Estrasburgo a imperiosa necessidade, à luz do princípio da subsidiariedade previsto no n.º 3 do artigo 5.º do Tratado da União Europeia, de reequipar a política nacional com meios de governo com fôlego capaz de responder aos desafios contemporâneos, segurança, defesa, coesão social e regional, em particular?

O autor escreve segundo novo acordo ortográfico

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