O que faz o pobre para ser pobre?

Na essência, ser rico ou pobre pode ser uma questão de sorte. Tudo depende, fundamentalmente, da lotaria social ou natural.

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Megafone P3: O que faz o pobre para ser pobre? Emil Kalibradov/ Unsplash
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O cientista David Marçal voltou, no PÚBLICO, a por o dedo na ferida – quanto mais a ciência avança e investiga os processos mentais e neurológicos de decisão, mais difícil se torna aceitar que a ação humana é livre. E se a ação humana não for livre, ou seja, se aquilo que fazemos não resultar das nossas crenças e desejos, mas de fatores genéticos ou neurológicos que, individualmente, não controlamos, então põe-se em xeque a nossa responsabilidade pessoal, civil ou criminal e, deste modo, pode sobrar pouco espaço para o mérito ou desmérito das nossas ações.

Como se vê, não é apenas uma questão filosófica sujeita, como pensam muitos, a interpretações meramente subjetivas e, por este motivo, pouco consistentes. Aliás, como refere David Marçal, avance a ciência o que avançar, nunca eliminará a discussão filosófica e moral sobre este problema.

A este poderoso argumento (da ausência) do livre-arbítrio – defendido por cientistas como Einstein e por filósofos, habitualmente denominados “deterministas radicais”, como Espinosa, Schopenhauer, Nietzsche ou Derk Pereboom – junta-se o argumento da arbitrariedade do mérito e o argumento da sorte. Rawls chama-lhe a “lotaria social” e “lotaria natural”.

Comecemos pelo primeiro. O mérito e a inerente recompensa social não são independentes de contextos sociais e históricos impostos ou compartilhados numa determinada sociedade – em determinada época pode-se enaltecer determinadas qualidades que, eventualmente, noutro tempo ou noutra comunidade são pouco apreciadas.

Por exemplo, diferentes poderes políticos, diferentes sistemas de ensino podem implementar processos diversos de valorização do mérito escolar dos alunos ou até do mérito ou avaliação de desempenho dos docentes. O que significa que o mérito pode resultar de uma valoração arbitrária realizada pelo sistema político, económico e social, independentemente do talento ou do esforço do indivíduo. Cristiano Ronaldo teve a sorte de ser muito bom numa atividade altamente valorizada no século XXI. Com o mesmo talento para manipular uma bola, Ronaldo, na Idade Média, nunca passaria de um plebeu. A produtividade de um trabalhador que desempenhe a mesma função e execute as mesmas tarefas não é recompensada do mesmo modo na Alemanha, em Portugal ou na Índia, mesmo que, com muita probabilidade, um indiano ou um português tenham que despender muito mais esforço físico e intelectual que um trabalhador alemão, para o obter o mesmo rendimento.

John Rawls – e este é o segundo argumento – considera que, na essência, ser rico ou pobre pode ser uma questão de sorte. Como tal, também considera arbitrárias as condições naturais (a lotaria natural — força física, saúde, QI, etc… ) e sociais (lotaria social — família, contexto social, infortúnios, etc…) em que cada um nasce. Nos anos setenta, Rawls foi talvez o maior defensor da discriminação positiva dos mais desfavorecidos (em Uma Teoria da Justiça), através de uma regra a que chamou “Princípio da Diferença”. E foi mais longe, ao afirmar que, para haver justiça numa sociedade, quem foi melhor premiado pela lotaria natural ou social tem a obrigação moral de partilhar os respetivos benefícios com quem não teve a mesma sorte, nomeadamente, através de uma redistribuição fiscal dos seus rendimentos implementada pelas instituições políticas.

Ora estes, na minha opinião, são argumentos fortes que podem e devem trazer ao espaço político e à discussão pública e democrática do mérito e da meritocracia, menos arrogância, menos humilhação e ressentimento e mais humildade, na relação entre ricos e pobres, ou simplesmente, entre pessoas social e economicamente diferentes. Quando, como afirma Michael Sandel, na Tirania do Mérito, constatarmos que “apesar da importância do esforço, o sucesso raramente advém do trabalho árduo”, haverá mais solidariedade, menos estigmatização social e mais preocupação com as desigualdades sociais, a mobilidade social e o bem comum.

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