Se ao menos os palestinos fossem mais branquinhos

De cada vez que morre um palestino indefeso morre um pouco do espírito europeu, um pouco da humanidade, um pouco de nós. Se a isto já fechamos os olhos, vamos abri-los perante o quê?

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Falar sobre o conflito israelo-palestino é pisar um campo minado: há sempre coisas que não sei, dados que ignoro ou contextualizações que me faltam. Não sou perito em Médio Oriente, Direito Internacional ou Estudos de Guerra — e uma vida dedicada ao tema não seria suficiente para ler tudo sobre ele.

Mas, para compreender o óbvio, não preciso de mais: ver crianças com olhares de cão perdido, mães a vomitar a alma em choro ou cadáveres amontoados em ruas, sabendo este quadro intencional, basta-me para condenar os ataques de Israel e pôr-me do lado dos palestinos.

Não se mune de razoabilidade o que é irrazoável. Não se justifica que para matar cabecilhas do Hamas — que cobardemente faz dos palestinos escudos de guerra — se matem 45 civis, mesmo alegando um “incidente trágico”. No mundo real sai mesmo sangue do corpo das pessoas e a sua pele derrete-se se exposta às chamas.

Somos carne e osso. Não será a tinta de tratados internacionais que esguichará dos nossos corpos quando abatidos, não serão estudos sobre legítima defesa que beberemos para não morrer à sede, não será de “contextualização histórica” que nos alimentaremos para sobreviver à fome. Antes das letras ou tratados, somos bichos — e por isso revolta-me que nos amparemos nos primeiros para matar, “com contexto”, os segundos.

Aquando da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Ocidente prontamente condenou as intenções do “mais forte” de devorar “o mais fraco” — e, por isso, uniu-se para salvar o oprimido. Com certeza há diferenças desse para o conflito israelo-palestino: mas, em traços gerais, não está o mesmo a acontecer agora no Médio Oriente? Não há um conjunto de humanos a ser hediondamente perseguido por outro que é maior e mais artilhado?

Que diferença há? E porque estes já não choramos, sentimos e defendemos? Onde está a tal virtude europeia fundadora dos direitos humanos?

Se os palestinos tivessem um tom de pele mais claro, talvez houvesse mais empatia quando são queimados vivos. Tivessem os olhos mais azulados e talvez conseguíssemos ver com mais clareza o seu sofrimento. Não tivessem a cor do cabelo tão escura e talvez nos fosse mais fácil ver que trazem a morte estampada na cara.

Eis a principal razão para a diferença de tratamento entre a causa palestina e ucraniana: não que os ocidentais olhem para a pele dos primeiros e concluam que, “por não serem brancos”, possam “morrer à vontade”; mas sim que, por não serem brancos, a sua dor não lhes doa tanto. Afinal, são os “outros” — se ao menos fossem mais branquinhos...

Em 2015, deu à costa turca, morto, como um saco de batatas, o pequeno Aylan Kurdi — uma criança síria que com os pais tentava fugir à guerra do seu país. A sua pele era clara e estava vestido como estão hoje os nossos filhos: T-shirt encarnada, calções azuis e umas pequenas sapatilhas para uns pequenos pezinhos. Pela sua semelhança “connosco” — até sinto vómitos —, a fotografia de Aylan correu o mundo e foi importante para a consciencialização europeia do desastre humanitário que se vivia.

É este o nível do nosso egocentrismo: para termos pena, precisamos de nos rever. E para isso não basta que os outros tenham braços, pernas, olhos e consciência; não basta que também gostem de futebol, comam, escrevam poesia ou amem os seus filhos. Não, não — é mesmo preciso que se pareçam connosco: que usem as nossas roupas, que eventualmente carreguem a nossa cruz e que, idealmente, tenham um tom de pele parecido com o nosso.

Pois não é assim: de cada vez que morre um palestino indefeso morre um pouco do espírito europeu, um pouco da humanidade, um pouco de nós. Se a isto já fechamos os olhos, vamos abri-los perante o quê?

Que, de tanto gritar, aos palestinos não falte a voz — e que, por cá, possamos continuar a ecoá-la. É triste que os pequenos nunca tenham razão — mas mais triste ainda é que, quando esta lhes é dada, estejam já mortos: a boiar.

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