O Ministério da Verdade orwelliano e António Costa. Quem avalia a Justiça?

Os crimes não são crimes, mas a prova que nada prova recolhida pela vigilância deve ser mantida: nunca se sabe, o que não é crime pode vir a sê-lo. Não foi assim com algumas escutas de Sócrates.

Ouça este artigo
00:00
04:32

Se António Costa não fosse candidato à presidência do Conselho Europeu teríamos visto fugas de informação de um inquérito-crime? Não teriam tanto interesse nem o mesmo timing político.

O teor de escutas divulgadas nesta terça-feira alerta-nos de novo para um problema antigo. Há uma certa justiça e um certo jornalismo que aparentam privilegiar o interesse político e a polémica.

O interesse público não justifica que se usem escutas sem relevância criminal. Houve até um presidente do Supremo que decidiu a sua destruição, entretanto travada por uma decisão judicial formalmente legítima mas inquietante que levou a que continuem a existir no processo.

A vulgarização do recurso a escutas

As intercepções telefónicas devem ser usadas excepcionalmente. Lesam sempre direitos fundamentais protegidos na Constituição da República. Por isso, é que são usadas como meio de prova quando o bem jurídico em causa é superior aos direitos violados.

Mas há vários anos que a Justiça vulgarizou o seu uso. Boa parte da investigação passou a fazer-se sentado com os headphones. Isso ficou claro, por exemplo, em 2007, quando ocorreram vários homicídios na noite do Porto. Os polícias tinham deixado de cultivar as informações vindas do terreno e a investigação inicial não tinha mais do que escutas que não ajudavam a esclarecer os crimes.

Neste caso, os alegados crimes são de natureza diferente mas fazer memória disso é importante: as intercepções continuam a ser parte fundamental. Não há dúvida de que houve um juiz que autorizou as escutas a João Galamba e que António Costa não era directamente visado.

Chegados aqui fica a dúvida: qual é o interesse público ou judicial de sabermos que o ex-primeiro-ministro falou ao telefone com o então ministro sobre a necessidade de demitir a, à data, CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener?

E se por absurdo tivesse defendido que era preciso mantê-la para demonstrar à opinião pública que o Governo que a contratou não era um cata-vento? Há uma espécie de ingrediente mediático que se serve aos cidadãos e que pode interessar a duas partes: à defesa da então CEO da TAP e aos opositores de Costa.

Não há memória de outras escutas sem relevância criminal serem mantidas num caso. E é preocupante a qualidade de algumas decisões judiciais e dos media que podem ter efeitos em todos nós e sobre o Estado de Direito.

Um procurador e um presidente do Supremo consideravam que as escutas, sem relevância criminal, deviam ser destruídas. Outro MP considerou depois que não tinham ligação aos factos em investigação na Operação Influencer, mas também admitiu que poderiam vir a ter no futuro. E o presidente do Supremo que se seguiu concordou. Em que condição? Precisamente como juiz de instrução (dos direitos, liberdades e garantias) por estar em causa um primeiro-ministro.

O exemplo contrário das escutas de Sócrates

Não foi assim em 2010, quando o então presidente do Supremo, Noronha de Nascimento, ordenou que fossem eliminadas escutas no Face Oculta em que o então primeiro-ministro José Sócrates fora apanhado em conversas com o alvo: Armando Vara. Considerou que o conteúdo era pessoal e em nada importava ao processo nem indiciava crime. Igual posição teve o então procurador-geral da República Pinto Monteiro, apesar de outra parte do MP ter opinião bem diferente.

Também então as escutas interessavam a uma das defesas. Ricardo Sá Fernandes, advogado de Paulo Penedos, disse que "todo o processo ficou inquinado” com a sua destruição, que só viria a acontecer em Setembro de 2014, após muita polémica judicial e mediática.

O desfecho e a actuação da Justiça foram diferentes: o conteúdo das escutas em que foi apanhado Sócrates nunca foi conhecido.

De volta a Galamba e Costa, a tese é diferente e orwelliana. Os crimes que cometemos agora não são crimes, mas a prova que não é prova de nada recolhida pela vigilância que foi feita dos crimes que não o são deve ser mantida, porque nunca se sabe se o que não é crime pode vir a sê-lo. Faz pensar no Ministério da Verdade. Para alguns quadrantes, a Constituição da República, o Código de Processo Penal e o Código Penal foram contaminados pelo livro Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.

E agora, quem avalia a Justiça? São possíveis inspecções e até aberturas de inquérito-crime para escrutinar o que não deve acontecer. E há também exemplares juízes e procuradores.

O MP vai investigar a fuga de informação. Quer saber quem deu as escutas aos jornais. Mas a Justiça devia preocupar-se em avaliar melhor a qualidade das suas decisões em conjunto com a sociedade e de forma aberta. O pacto para a Justiça, que Marcelo Rebelo de Sousa há muito pediu, é cada vez mais importante.

Sugerir correcção
Ler 19 comentários