Vá lá! Já passou…

Quando me dizem, que tenho que despachar os afazeres emocionais, parece que estão a insinuar que estou a engonhar na faixa do meio, a atrapalhar o trânsito.

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"O que será de nós se não estivermos à pressa?" Ilustração: Rita Lagarto
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O mundo move-se a toda a velocidade, e nós com ele. Sempre. A velocidade da rotação da Terra sobre si própria num dia é de cerca de 1675 km/h, ou seja, 465 metros por segundo. É rápido. Ainda assim, a Terra é bastante lenta comparada a outros astros do universo. O mais curioso é que, aparentemente, desde que os cientistas começaram a calcular a velocidade de rotação da Terra, o planeta já ficou mais rápido 28 vezes. Ou seja, a Terra está a acelerar. Mesmo que seja apenas por 1,59 milissegundos, o tempo de rotação é mais rápido.

Será que é por isso que também ficámos tão acelerados? A correr entre tarefas, elas próprias apressadas e céleres, a despachar afazeres, a ler enquanto caminhamos, sobretudo no telemóvel — ele próprio eficazmente veloz — a responder a e-mails, a aviar tarefas, enquanto deglutimos avidamente a refeição, fast food, ou take away, ou nem que seja só o "prato do dia" que levou tempo a preparar, mas está "pronto a servir", a antecipar respostas a mensagens, a despachar assuntos, ao volante, no comboio, no metro, na mesa do café, em speed datings, para não perder tempo, “tempo é dinheiro”, a preencher cada compasso de espera, porque “parar é morrer”…

É?

Quando não havia Smart TV ou Internet, corria-se no intervalo. Para ir ao WC, ou para ir buscar mais pipocas, para não perder pitada do filme. Sempre achei que era um ótimo motivo para correr, e agora parece-me incrivelmente ultrapassado. Agora, usamos plataformas de streaming, cujo significado redundantemente indica: "transmissão de dados num fluxo constante e contínuo", e que permite que a reprodução comece enquanto os restantes dados ainda estejam a ser recebidos. Sem parar! A toda a velocidade. Queremos processadores mais rápidos. No computador, no telemóvel…

Eu desespero diante do ecrã parado do telemóvel, ou de um mero soluço de 1,59 milissegundos no arranque de uma aplicação. Vejo o circulozinho a girar, e já estou a bufar exasperada, como se um par romântico me tivesse feito esperar uma hora diante de uma vela que derrete. Farto-me de fazer a limpeza de cache. Quero o meu smartphone seja não só smart como fast.

Aproveito os semáforos para responder a mensagens de voz, consulto o e-mail na caixa do supermercado, diante do revirar de olhos da rapariga da caixa que tem de repetir a operação no multibanco porque me distraí e não fui capaz de esperar e saquei o cartão da máquina antes do tempo. Uso a Via Verde para não ter de esperar. Tenho um calcanhar de Aquiles na velocidade rodoviária, mais propriamente um pé pesado de Aquiles, que já me trouxe algumas chatices. Percebi isso quando a dada altura recebia correspondência invariavelmente do mesmo remetente: Ministério da Administração Interna, normalmente acompanhado de uma fotografia minha a preto e branco, sem grande apelo artístico, visto ser capturada pelas câmaras de radar da Avenida de Ceuta ou no Túnel do Marquês,em Lisboa, onde por algum motivo simbólico os meus pensamentos derrapavam distraídos sobre o acelerador, acima dos 50 km/ hora permitidos. Resultado: 120 euros de multa. Vezes umas quantas.

Perto da quinta multa, a carta já me era entregue com o tom solene de um soneto de Shakespeare por parte do carteiro dos CTT, já que ao receber a notícia de mais uma coima, eu respondia com a mesma cólera de Cleópatra quando o mensageiro a informa que António se casou com Otávia, e lhe lançava uma praga.

Justificamos a velocidade da marcha. É o trabalho, a vida, a rentabilidade que o impõe, a necessidade que dita, é o quotidiano que o reivindica, o patrão que pressiona, mesmo quando o patrão somos nós… Como se o dia estivesse sempre prestes a prescrever, o prazo de validade a terminar. “A fila anda!” ou “The show must go on!

O filósofo Byung-Chul Han repara que nem todas as formas de tempo podem ser aceleradas. Que esse é o caso dos rituais, que não se podem acelerar as cerimónias, como os rituais religiosos ou o teatro. E eu que faço Teatro pergunto-me quantas vezes perguntei: “Quanto tempo tem o espetáculo?”

Ainda assim, contraditoriamente à minha aceleração rodoviária é comum sentir-me mais lenta em relação a tudo o resto. Como se estivesse desfasada, como o planeta Terra em relação aos outros astros. Mesmo que tente acompanhar. Preciso de tempo. Preciso de mais tempo. Sobretudo na rotação sobre mim mesma.

Quando era miúda era comum ouvir: “Deu-te o pasmo?!” ou “Estás a pensar na morte da bezerra?” E sim, era isso. Não que estivesse a pensar propriamente na morte, muito menos na de uma bezerra. Tinha-me dado o pasmo. Ficava parada, no tempo real, em pause, enquanto tudo se movia à minha volta, a tentar decifrar um pensamento, ou a deslizar para dentro de um escorrega interior qualquer que me fazia ficar assim interrompida, a viajar para o meu universo particular.

O pasmo era na verdade muito útil já que a distração em relação ao que se passava lá fora era se calhar a única forma de poder ficar atenta em relação ao que se passava dentro. Num tempo que eu precisava de recrutar, que não se adequava ao tempo da realidade.

Ainda hoje me acontece. Pasmo. Fico entalada no tempo. Como um carrinho de choque daquelas da feira, que param de repente no meio da pista porque a moeda acabou, enquanto os outros continuam a girar.

Frequentemente oiço protestos. Sobretudo quando é altura de decidir que prato vou escolher no menu, porque paro, e fico a imaginar as várias hipóteses, a ruminar sobre o que cada uma delas poderia ser… “Vá lá! Tanto tempo? Não podes pensar tanto…”

O mesmo para os desgostos sentimentais: “Vá lá! Tanto tempo? Não podes pensar tanto…” Fico a imaginar as várias hipóteses, a ruminar sobre o que cada uma delas poderia ser. Lenta. “Ana! Já passou!” Mas não passou. Basta um sinal vermelho, bastou passar um carro da mesma marca, da mesma cor, com uma matrícula semelhante, a matrícula que sei de cor, que se decorou sozinha na minha cabeça, para eu perceber que não passou. Não sou rápida. A esquecer, sou lenta. Só sou rápida quando está lá o raio do radar da Avenida de Ceuta; aí é que me lembro de ser rápida. Sou lenta.

Quando me dizem, que tenho de despachar os afazeres emocionais, parece que estão a insinuar que estou a engonhar na faixa do meio, a atrapalhar o trânsito, quando na verdade só me atrapalho a mim mesma, a mais ninguém, porque se calhar não passou, a fila não anda assim tão rápido.

Tratamos tudo com tanta rapidez, que até os sentimentos parecemos querer abreviar, despachar. Resoluções em fast food, fáceis de engolir, como uma receita curta no Instagram, uma frase, uma citação que resolve a vida, em três passos, dois, passos, um passo. Já passou. Como naqueles testes de Pense rápido, e logo eu que demoro tanto tempo a pensar.

Ultimamente descobri que gosto de correr, como desporto. Na proporção inversa a que giro as pernas, o meu corpo abranda. E, enquanto corro, paro. Ligada nem ao que vem nem ao que foi, no absoluto reduto do agora. E aí abrando, mesmo que as pernas não desacelerem. Ocupo o meu corpo, com os pensamentos a maturar, em salmoura, em vinha de alhos. Apesar de estar em movimento, é nesse momento que paro.

O Hemingway dizia que quando um escritor não consegue escrever, o melhor que pode fazer é parar. A história há-de vir ao corpo. Mais vale parar. Não insistir na pressa de terminar a história.

Fico a pensar se não nos aceleramos tanto, porque não sabemos o que fazer connosco se nos descobrirmos parados. O que será de nós se não estivermos à pressa, ocupados, úteis, a fazer acontecer, cheios de projetos, trabalho, no lodo, a mil à hora? O que seremos? Ainda nos arriscamos a reparar que não sabemos bem o que somos. Ou que não servimos para grande coisa.

Carícias e orações não podem ser aceleradas, diz ainda Byung-Chul Han.

Às vezes, parar… é viver.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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