Pobreza: quatro anos depois, os relatos de quem vivia do RSI

Em 2020 falámos com três pessoas que recebiam o RSI em Rabo de Peixe, Açores, onde os beneficiários têm vindo a diminuir e a pobreza a aumentar. O que mudou na vida de Crisálida, Emanuel e Décia?

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Rui Soares
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Rabo de peixe, 7 de junho, 2024, acores, sao miguel Rui Soares
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Passaram-se quatro anos desde que encontramos Crisálida Vieira pela primeira vez. Estava na rua, diante da casa onde morava, igual a quase todas as outras do Bairro 13, em Rabo de Peixe, nos Açores. Segurava uma máscara, símbolo datado de uma época de pandemia, e com 21 anos, casada, dois filhos e um marido toxicodependente; tinha uma história que sintetizava a complexidade social daquele lugar.

“Isso foi noutra vida”, começa por dizer. As palavras de Crisálida indiciam mudanças. Encontrámo-la noutra casa, a poucos metros da anterior. Aquando da primeira conversa, em Novembro de 2020, dizia que não podia trabalhar porque tinha de cuidar dos filhos. “Se não fosse o rendimento, como é que era? Eu ia pedir esmola para a cidade”, disse, então, sem pejos. O marido também não tinha emprego e o casal sobrevivia com uma prestação de 430 euros (valor para quatro pessoas) do Rendimento Social de Inserção (RSI).

O tempo passou. Não foi pedir esmola, nem saiu da terra onde sempre viveu, mas passou a sustentar a família sem ajudas sociais. “Já não recebo nem RSI nem abono. Eu estou a trabalhar nas limpezas, senão não tenho para os meus filhos. Faço horas extras e tudo porque o ordenado não dá para as despesas”, revela, agora com 25 anos. O diálogo acontece à porta da casa onde vive. Há gente a sair e entrar; um par de bicicletas repousadas na parede; um fio apinhado de roupas a secar.

“Não tenho medo de mostrar que sou uma mulher de trabalho”, atira Crisálida, que continua de resposta pronta na língua, exibindo as mãos manchadas de farinha quando o pai vem cá fora perguntar se o pão está pronto. Os vizinhos ao redor olham intrigados, questionando o interesse jornalístico na vida da jovem. Enquanto o pão coze, há tempo para a história.

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A localidade de Rabo de Peixe, em São Miguel, continua a ser uma das mais pobres do país

As circunstâncias forçaram-na a “fazer pela vida”, depois de o marido ter morrido subitamente enquanto apanhava lapas. Viúva, Crisálida deixou o local onde vivia, que pertencia aos pais do marido, e mudou-se para a casa de família, onde actualmente vivem 14 pessoas. Entretanto, teve mais um filho, mas sem habitação própria e integrada no agregado familiar, deixou de ter direito ao RSI. “Cortaram-me o rendimento porque era muita gente na mesma casa. Eu disse que não fazia sentido porque eu não ia para uma casa com os meus filhos pagar uma renda sozinha”.

Sem o RSI, precisou do “apoio de outras pessoas”, admite, porque deixou de ter o “dinheiro que usava para pagar despesas da casa ou comprar uma roupinha para os meninos”. “Não foi fácil” conseguir emprego e antes de ser contratada para a empresa de limpezas fez uns biscates a vender roupa.

A trabalhar, teve de arranjar uma solução para os filhos de seis, quatro e um ano — e a gratuitidade das creches ajudou. “Meti o meu filho na creche, os outros estão na escola. Saem da escola e vão para o ATL ou para o futebol. Tive de me meter à vida. Sozinha, não tinha outro remédio”.

Em quatro anos deixou de ter os apoios sociais como uma única fonte de rendimento para passar a usufruir apenas de uma pensão de 60 euros de um dos filhos atribuída devido à morte do marido. Não recebe abono dos outros dois, porque esses são filhos de um outro homem que esteve preso. As dificuldades, essas continuam. “O meu ordenado é mais do que Rendimento. Nem RSI nem subsídios para os pequenos. Nada. Ninguém me dá nada. Eu é que sustento os meus filhos. Estou solteira a ganhar por eles.”

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Crisálida Vieira em Novembro de 2020, quando beneficiava de RSI Rui Soares (arquivo)

Menos RSI, mais pobreza

O relato na primeira pessoa espelha os flagelos sociais que dilaceram uma região e permite elucidar a discussão acerca do RSI, normalmente contaminada por estigmas. Crisálida contribuiu para a redução do número de beneficiários daquele rendimento durante os últimos anos nos Açores, que, segundo os dados mais recentes, foram 7784 em Abril. São menos 1201 face ao mesmo período do ano passado e menos 6459 pessoas do que na altura em que falámos com Crisálida pela primeira vez.

A queda acompanha a tendência nacional: em Abril deste ano registaram-se 182.326 beneficiários; em Abril do ano passado foram 189.958. Por distritos, o valor da prestação paga nos Açores (108,19 euros) continua a ser, de forma destacada, o mais baixo do país (a média nacional cifra-se nos 154,49 euros).

Apesar da redução do RSI no arquipélago açoriano, com cerca de 236 mil habitantes, continua a existir um “numero muito grande de beneficiários face à população residente e em relação à taxa de pobreza”, afirma Fernando Diogo, investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova). “Isso pode ter a ver com uma pobreza mais dura no caso dos Açores, o que é compatível com os indicadores de desigualdade de rendimentos na região”.

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Os Açores são a região mais desigual do país, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), com um coeficiente de Gini de 36% em 2022, e apresentaram a taxa de risco de pobreza mais elevada (26,1%) — juntamente com Lisboa, foram a única zona do país onde a pobreza se agravou entre 2021 e 2022.

A região mais desigual num país já por si desigual. Portugal ocupava em 2022 o 7.º lugar de uma lista de países com maior desigualdade da União Europeia. Na quarta-feira foram também revelados dados do Eurostat que colocaram Portugal como o 13.º país da União Europeia com maior taxa de risco de pobreza e exclusão social em 2023 — 2,1% da população —, o que até representa uma evolução e uma retoma aos valores pré-pandemia.

Nos Açores, contudo, o aumento da pobreza e a diminuição do RSI podem estar relacionados com os critérios do próprio apoio e com a forma como é atribuído, segundo Fernando Diogo. O coordenador do estudo A Pobreza em Portugal: Trajetos e Quotidianos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), lembra que o RSI “não é para as pessoas em situação de pobreza”, uma expressão que pode parecer inesperada, mas que se explica pelo universo limitado de indivíduos a quem se dirige o subsídio. “O RSI é só para os mais pobres entre os pobres. A maior parte das pessoas em situação de pobreza não tem direito ao RSI, quer no país em geral, quer nos Açores em particular”.

O também professor da Universidade dos Açores faz a ressalva de que a extensão da cobertura da acção social nos Açores dificilmente deixa escapar alguém que tenha direito ao RSI, ao contrário do que acontece em outras regiões, mas também levanta uma hipótese para a redução do número de beneficiários relacionada com a “margem de manobra” que a lei permite. “No caso dos Açores, o que pode ajudar a explicar a pobreza a aumentar e o RSI a diminuir também pode ter a ver com uma interpretação mais restritiva da lei”.

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Os Açores são a região mais desigual do país e apresentaram a taxa de risco de pobreza mais elevada (26,1%)

“Quero trabalhar para desistir do RSI”

Voltemos a Rabo de Peixe. Seguimos as indicações de Crisálida à procura de actualizar os testemunhos. No bairro, as casas continuam iguais e coloridas, ora de tinta escassa, ora de fachada em cerâmica, umas sem fechaduras, outras com a chave à porta. A vida acontece nas ruas, o espaço de comunhão da comunidade, entre conversas demoradas abrigadas pela sombra de uma casa ou no café onde toda a gente se conhece. Face a 2020, a diferença reside no aparecimento cada vez mais frequente de curiosos que ali aparecem na ânsia de conhecer a freguesia que serviu de palco à série da Netflix com o mesmo nome do bairro, que somou milhões de visualizações em todo o mundo.

Em frente ao campo de futebol, onde há sempre um conjunto de jogadores a testar a durabilidade do sintético descorado, reencontramos Emanuel. “Na minha vida não mudou muita coisa”, começa por dizer, agora com 27 anos. “Isso está complicado”. Está desempregado, tal como há quatro anos, desde que a carpintaria onde trabalhava fechou.

A sua subsistência, diz, depende do RSI, cujo valor aumentou 20 euros, para 200 euros, comparativamente a 2020, uma subida que não é suficiente para acomodar o aumento do custo de vida. “Esse valor não dá para viver. As comidas estão caras hoje em dia. Não dá para muito”. Emanuel procura, por isso, arranjar uns “trocos extras”, seja através do arranjo de televisores e equipamentos electrónicos, seja por via da venda de peixe e lapas que apanha. São formas de “juntar mais algum” e ajudar o rendimento familiar, já que vive com os pais e sete irmãos. Persegue agora a esperança de conseguir emprego na junta de freguesia. “Eu tenho vontade de trabalhar para desistir do Rendimento, que não dá para nada.”

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Emanuel Oliveira diz que nos últimos quatro anos a sua vida "não mudou muita coisa"
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Fernando Diogo: “O RSI é só para os mais pobres entre os pobres. A maior parte das pessoas em situação de pobreza não tem direito ao RSI, quer no país em geral, quer nos Açores em particular”
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Crisálida Vieira: “Não tenho medo de mostrar que sou uma mulher de trabalho”

Cada caso é um caso e cada vida é uma história. Pode-se, contudo, identificar quatro perfis de pobres em Portugal, segundo o estudo da FFMS: reformados (27,5% do total dos pobres em Portugal), precários (26,6%) desempregados (13,0%) e trabalhadores (32,9%). Estas categorias também se enquadram no contexto açoriano, embora com nuances como a de existir um “menor peso dos reformados e trabalhadores e um maior peso dos precários e desempregados”, segundo Fernando Diogo, coordenador da investigação.

Pelos perfis percebe-se a abrangência da pobreza em Portugal, que atinge um número significativo de pessoas em diferentes contextos, enquanto o RSI é direccionado a um grupo circunscrito de indivíduos em situação de pobreza intensa mediante o cumprimento de determinados requisitos. Os próprios valores alocados ao RSI assim o comprovam, uma vez que o subsídio representou apenas cerca de 0,9% do total do orçamento da Segurança Social em 2020.

Pedir, por isso, que o RSI “capacite as pessoas para as retirar da situação de pobreza é esperar de mais”, defende Fernando Diogo. “O que o RSI faz é reduzir a intensidade da pobreza; fazer com que as pessoas, por exemplo, não passem fome ou paguem a renda de casa”, realça o investigador, lembrando ainda o impacto positivo do subsídio na frequência escolar e na vacinação das crianças.

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Para a inserção é preciso travar outra batalha. O professor universitário mostra-se “céptico” em relação à formação do Instituto do Emprego e Formação Profissional, que muitas vezes não procura ajustar a oferta aos formandos. Fernando Diogo evoca um exemplo citado no estudo da FFMS em que um imigrante angolano de 55 anos, trabalhador de construção civil, foi obrigado a frequentar um curso de corte e costura. “Faz-se a formação porque é preciso executar verbas europeias e apresentar resultados.”

“O RSI é a vida das pessoas”

Ao contrário da última vez, não encontramos Décia Amaral a esfregar as janelas de casa, um hábito rotineiro de quem ali mora, devido à salinidade. Já não estamos no Bairro 13, mas mais acima, entre as ruas achatadas que começam no centro da freguesia e desembocam no mar.

Batemos à porta. Décia, agora com 48 anos, abre e conta-nos que também contribuiu para redução do RSI nos Açores, porque o filho mais novo passou a ser maior de idade. “Deixei de receber, mas o valor era tão pequeno que não compensava.”

Recebia então 60 euros, quantia que sobrou do corte feito em 2010 na sequência de alterações aos critérios de atribuição do apoio. Na altura, viu reduzida a prestação por residir em casa dos pais. É lá que vive há 30 anos, juntamente com os quatro filhos. “Uma pessoa vive com os pais e cortam no rendimento porque nos dizem que temos a reforma deles. Isso não é justo para quem trabalhou toda a vida...”, critica.

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Pedir que o RSI “capacite as pessoas para as retirar da situação de pobreza é esperar de mais”, defende Fernando Diogo

A pobreza em Portugal é caracterizada por um processo de reprodução intergeracional, como explicam os autores do estudo A Pobreza em Portugal: Trajectos e Quotidianos, onde os “indivíduos crescem num contexto mais ou menos continuado de privação, o que condiciona, à partida, as suas oportunidades de vida”. Para os Açores não existem dados concretos, mas é bastante expectável que a reprodução da pobreza de geração em geração seja ainda mais acentuada, sobretudo devido aos elevados níveis de pobreza e desigualdade do arquipélago, segundo Fernando Diogo.

No caso de Décia Amaral, como os filhos estão todos a trabalhar, o RSI “já não é uma necessidade”. “Todos contribuem para a casa”, o que compensa mais do que o baixo valor que recebia da prestação. Ainda assim, a rabo-peixense alerta que o subsídio “é muito importante para quem precisa” e que, “por uns, não podem pagar os outros”.

Pede, por isso, “cuidado” quando se fala dos beneficiários do RSI, um pedido feito por quem conhece bem a realidade da terra onde vive. O marido é pescador, os filhos também: Décia Amaral está habituada a ser líder com a dureza de quem abraça o mar como profissão. É que a vida de pescador é como as marés, “tanto dá como tira”. Nunca se sabe o que virá do mar. Nem onde se vai estar daqui a quatro anos. “O RSI é a vida das pessoas e há quem passe muitas carências. A vida do mar não dá para muita gente pagar águas, luz, rendas e comida. O Rendimento [Social de Inserção] é uma necessidade."

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O estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos estão disponíveis para download gratuito em ffms.pt/estudos/estudos
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