Em Volta para a Tua Terra, Keli Freitas usa o afecto para falar de imigração

A partir do rasto da sua bisavó portuguesa, a criadora brasileira traça um retrato da sua actual condição de imigrante. O espectáculo estreia-se esta sexta-feira em Guimarães.

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Keli Freitas mergulhou na Torre do Tombo em busca de documentos sobre as suas origens portuguesas DR
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Uma “vida desconhecida inteira pela frente”, a chegada a um “novo mundo” onde o café é pago “em euro” e em que ter uma bisavó portuguesa, afinal, “não dá direito a nada”. É a partir destes fragmentos de um desembarque do outro lado do Atlântico que Keli Freitas, criadora brasileira residente em Portugal há sete anos, reflecte sobre a sua vida enquanto imigrante e desenha Volta para a tua terra, a sua nova peça, em estreia esta sexta-feira no Centro Cultural Vila Flor (21h30), em Guimarães, no âmbito dos Festivais Gil Vicente.

Graças a um processo de autodescoberta através da procura pela já falecida bisavó Virgínia, natural de Torres Vedras, Keli Freitas leva a cabo o resgate da sua memória familiar e daí segue para uma reflexão sobre a sua condição. “É o facto de eu viver em Portugal e ser privada de direitos – é uma luta anual para ser uma trabalhadora independente legalizada que me move a fazer essa peça”, enquadrou a criadora em conversa com os jornalistas, após um ensaio na Fábrica Asa.

Nela, e sob um leve tapete sonoro, vai dizendo que em redor do bairro onde reside, o Bairro das Colónias, em Lisboa, todos as ruas “tinham nomes de ex-colónias portuguesas”. A toponímia mudou depois da revolução de Abril, “mas não colou, ninguém o chama assim”. Ou que, quando o seu visto caducou, viveu a “primeira manhã ilegal” e tomou “o primeiro pequeno-almoço ilegal”. E repetindo que a advogada, a Segurança Social, ou o extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras lhe disseram que ter um parente português não lhe confere nacionalidade. “Se a minha bisavó me desse o direito a uma cidadania, eu talvez tivesse gastado a minha energia tirando a cidadania e não escrevendo uma peça sobre o interesse que brotou em mim por não poder ter direito a nada”, explicou.

O questionamento da sua experiência enquanto imigrante já vem de trás. Em Outra Língua (2022), explorou as diferenças de linguagem entre o português de Portugal e o português do Brasil. Na sua nova criação, Keli Freitas lembra a quantidade de vezes que lhe perguntam de onde é: “Ser brasileiro, estar em Portugal, ser colonizado, estar na terra do colonizador, são estatutos que permeiam qualquer coisa que você faça: desde ir ao mercado até fazer uma peça de teatro. Você abre a boca e é a primeira que se sabe sobre você. Eu não sou portuguesa e todos os dias sou lembrada disso. É exaustivo, cansa.” E, numa altura em que as portas de entrada em Portugal se tornam mais inacessíveis e os imigrantes “não são bem-vindos”, há um “caminho muito claro a delinear-se à nossa frente". Um caminho que lhe diz pessoalmente respeito: "Como imigrante, eu me assusto.”

Volta para a tua terra, o título do espectáculo, reproduz uma frase xenófoba, escutada diariamente por quem é imigrante, mas esta escolha, argumenta a criadora, não serve “para ilustrar nada”. “Quando decidi que o nome da peça seria esse, eu tomei um susto: isso é tão forte. Ao mesmo tempo, acho que o próprio trabalho trabalha contra o título. Todo o mundo sabe o que essa frase quer dizer, e talvez você encontre dentro da peça uma história diferente da que o título conta.”

Porque o que aqui está “é uma colagem de vida”. Volta para a tua terra constitui a segunda parte de uma trilogia em torno da descoberta das figuras femininas da família de Keli Freitas. O primeiro espectáculo, Adicionar um lugar ausente, é sobre a sua mãe e a terra onde nasceu, Minas Gerais.

Neste segundo capítulo da trilogia, a árvore genealógica é desmontada. Ana Gigi, mulher com quem Keli Freitas partilha o palco e que acolheu a artista quando esta chegou a Portugal, faz breves descrições de alguns dos familiares da amiga. Gigi, que tem o mesmo nome que a bisavó de Keli, reflecte o outro lado desta viagem. “A peça é uma singela parte de singelos acontecimentos pessoais, como ter aqui a minha melhor amiga que tem o mesmo nome dessa senhora. Temos também uma desculpa para passarmos mais tempo juntas. A peça não é só sobre essa bisavó, é também os encontros todos que ela faz.”

A criação resulta de seis anos de pesquisa sobre a bisavó de Keli Freitas. Espelha um trabalho exaustivo de investigação, que desembocou em várias idas à Torre do Tombo à procura de documentos sobre a família. “É um dos assuntos que me interessam como artista, eu nunca tinha lidado com um arquivo tão grande para um projecto só. Tinha 35 anos e agora tenho 41. [Esta peça] é o tempo da minha vida em Portugal, o tempo da Gigi e da nossa amizade”, reflecte a artista. Volta para a tua terra podia ser sobre “uma outra imigrante qualquer em Portugal”. Afinal, tratou-se de “construir um espaço possível para falar de uma história banal”.

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