Quem vê caras também vê corações

Surpreendia-me que fossem os piores alunos da escola, quando eram os melhores a contar histórias, a escutarem-se uns aos outros, a criarem para além da realidade, a usarem o coração nas mãos.

Foto
"Surpreendia-me sempre com a capacidade que tinham de se reinventarem nestas histórias" Ilustração: Rita Lagarto
Ouça este artigo
00:00
08:49

Às vezes esqueço-me de me espantar. Distraio-me e esqueço-me de me surpreender, como quando me descuido e falho o prazo da declaração do IVA, vou andando e quando dou por ela… Passou-me. Mas imediatamente acontece uma coisa imprevisível, inacreditável, uma carta de aviso da realidade para me lembrar que o mundo é um lugar inteiramente inverosímil, como aqueles filmes com finais surpreendentes em que dizemos: “Oh, se isto fosse na realidade não acontecia”...

E não, não acontecia, porque na realidade o final provavelmente seria ainda mais confuso, aleatório e inesperado. Como na cena final do filme Magnólia, de P. T. Anderson, quando desatam a chover sapos do céu, numa escarduçada surrealista de anfíbios que caem sobre a cidade. Desde que vi o filme, volta e meia espreito o céu só para garantir que não há nenhum sapo prestes a cair-me na cabeça. Já me deparei com cenas tão mirabolantes da realidade, que nunca me pareceu assim tão insólito que chovessem anfíbios, e agora voltou a acontecer.

Foi há coisa de nem duas semanas, no meio de um dia vulgar — que é a forma predileta do extraordinário se fazer aparecer —, quando eu estava a regressar a casa de um trabalho artístico que tenho vindo a desenvolver há já alguns anos com jovens e adolescentes de bairros da periferia de Lisboa, com baixíssimas condições de habitação, etnias segregadas, e altos índices de criminalidade, a que antigamente se chamavam guetos, e a que agora chamamos delicadamente bairros vulneráveis, que é como quem diz pobres, que é como quem diz guetos.

Diz-se que quem vê caras não vê corações, mas eu farto-me de ver corações nas caras — porque às vezes os corações estão mesmo estampados, escancarados na forma como as caras me olham: a pulsar, a latejar, a pedirem para serem afagados, como os gatos quando se encostam às pernas. Na cara, de caras, eu vejo perfeitamente um coração.

No bairro, os jovens com quem tenho o privilégio de me encontrar semanalmente, além de usarem roupas coloridas e ténis garridos e farfalhudos, usam o coração na cara — assim como há quem use óculos de sol para disfarçar as olheiras, ou bonés para disfarçar a calvície —, mas no caso deles, não é para disfarçar coisa nenhuma, trazem o coração à mão de semear, na boca, nos olhos, muito barulhento, muito vivo. Mesmo como eu gosto.

Poderia escrever centenas de textos sobre cada um deles, porque quer se acredite ou não, apesar de miúdos, já trazem mais histórias para contar do que muitos de nós. Mas ali, nos nossos encontros, são eles quem escrevem as histórias. E fazem-nas com o corpo. No teatro. É esse o acordo. Tive a sorte de alinharem comigo, desde o dia em que cheguei nervosa e empolgada, a achar-me uma imitação outlet da Michelle Pfeiffer no Mentes Perigosas, a morder os lábios de entusiasmo e receio por entrar no bairro deles, centro comunitário adentro, entre os olhares dos moradores, como num filme de gangsters, a dar calinadas nos protocolos e nas formalidades institucionais, a fazer coisas ao contrário do que é suposto fazer, com o coração a palpitar.

Talvez por isso eles tenham acolhido a nerd à paisana que não se cansava de espantar com a estranheza do mundo. E tenham partilhado comigo, sem inibições, as palavras e as histórias que eram deles — provavelmente o seu único bem. O mais precioso. Tanto aquelas que fantasiam e se passavam em lugares onde o céu é feito de gomas com nuvens de algodão doce e pastilha elástica com granizo de petas zetas; como as histórias reais, as verdadeiras, aquelas a que responderíamos “Oh, isto na realidade não acontecia!”

As das fogueiras noturnas na praceta a assar gomas do Lidl e a lançar foguetes; as das brincadeiras nas escadas de incêndio dos prédios que dão diretamente para as estrelas e onde eles vêm os desejos por concretizar; as das saraivadas de tiros entre gangs rivais que se misturam com os foguetes e assustam os cães; a daquela vez em que a polícia entrou pelo quarto da rapariga adentro no meio da noite, e rasgou os brinquedos e as bonecas, para ver se tinham coisas lá dentro, que é como quem diz substâncias, que é como quem diz droga; a do dia em que um irmão mais novo tinha levado uma faca da cozinha para vingar a honra do pai ferido, e a faca enganada, nervosa, tinha acertado num desses corações que estão muito ali à mão de semear, e agora fazia a escola da prisão.

Surpreendia-me sempre com a capacidade que tinham de se reinventarem nestas histórias, enquanto estavam ali, engaiolados entre as grades concretas dos prédios de cimento, como pássaros exóticos e coloridos fechados em gaiolas. Surpreendia-me que fossem os piores alunos da escola, quando eram os melhores a contar histórias, a escutarem-se uns aos outros, a criarem para além da realidade, a usarem o coração nas mãos. E surpreendia-me que quando íamos ao Chiado para apresentar o nosso trabalho, os seguranças das igrejas e dos museus os barrassem sistematicamente e eu tivesse de assegurar: “Eles estão comigo!” Ou que as pessoas recolhessem discretamente as carteiras à sua passagem.

Acontece que num destes dias, fui conhecer um novo grupo destes miúdos. Estavam sentados num anfiteatro da escola, camuflados nos seus fatos de treino, que pareciam saídos de um videoclip de hip hop no Bronx ou do Gangsta’s Paradise, e faziam uma análise eloquente, serena, articulada sobre a necessidade de privacidade nas relações amorosas, o carácter violento de alguém que não respeita os limites do outro, e de como aquele que ultrapassa esses limites se torna agressor e tóxico. Por estas palavras. Tal e qual. Mas não foi isso que me surpreendeu por si só — tenho-me vindo a habituar à infinita capacidade que estes miúdos (tantas vezes tomados por desordeiros, que é como que diz delinquentes) têm de desconstruir a minha perceção da realidade, mesmo daquela que eu tanto trabalho tive a erguer, a desfazerem os meus preconceitos e noções preconcebidas, como um Labrador desastrado, que insiste em deitar abaixo a pilha de pratos acabados de alinhar em cima da mesa.

Acontece que precisamente nesse dia, saí diretamente do bairro e trespassei a linha invisível da cidade, a que separa o centro da periferia, da margem, do clandestino. Ali, a conduzir entre os prédios burgueses e as moradias upper class, do bairro adjacente ao lugar onde moro, fiz pisca para a direita, encostei, numa rua ampla, residencial, tranquila, deserta, para fazer uma chamada. Foi quando um Mercedes GLS 450 4MATIC topo de gama fez uma travagem brusca atrás do meu carro. “Olha, também vão encostar”, pensei, mas não, não tinham encostado. Lá dentro um homem e uma mulher de meia-idade, aspeto aristocrata, ele de camisa branca e óculos de armação arame; ela, cabelo composto em cabeleireiro, rosto maquilhado, vestido drapeado sobre estofos em pele.

Olhavam diretamente para o meu pequeno Citroën (um peixinho diante de um tubarão SUV), e eu via-os através do retrovisor. Vi que acenavam provocadores os braços no ar, com os rostos encrespados como se discutissem. Não um com o outro. Comigo. Perplexa, conferi, em volta a rua vazia. Ele mete a primeira e encosta o maxilar do tubarão ao meu lado, a uns milímetros da minha porta. Ambos acenam com as mãos como se fossem armas. Abrem o peito em tom de ameaça, insultam-me com injúrias num playback atrás da janela do carro. Eu solto um riso espantado. Abanei a cara e continuo a chamada telefónica. Então arranca. O motor a relinchar raiva e combustível.

Quando retorno a marcha vejo que atravessam o Mercedes no meio da estrada. “Anda cá. Damos-te uma coça!” Consomem-se numa raiva inflamatória, dir-se-ia que se regurgitam chamas. A cara suada e roliça do homem derrete sobre camisa Polo Ralph Lauren, enquanto ele imita uma gárgula cuspidora de afrontas. A mulher apoia-o furiosa. Avanço. Perseguem-me, como num filme. Não estão satisfeitos. Querem desforra, vingança, vendeta! Gangsters… Verdadeiros! Querem intimidar a mulher a solo, no carro pequeno, sem grandes armas, que se atreveu a cortar-lhes o caminho, a legitimar o seu direito a encostar na berma, logo a berma deles, do bairro deles...

Ponderei parar. Não tinha a menor dúvida que não sairiam do carro, que ficariam encolhidos, blindados no seu ar condicionado, na pintura a brilhar, nas jantes de luxo. Mas o tom da cara deles lastrava cá para fora. Violento. Agressor. Tóxico. Finalmente arrancaram. Fiquei paralisada. Não de medo. Mas de espanto.

Nessa noite fiquei deitada de olhos postos no teto, a imaginar o que seria se o céu fosse feito de pastilha elástica com algodão doce, a pensar no irmão mais novo fechado na prisão-escola, nos miúdos presos no bairro. A pensar no homem e na mulher presos no seu Mercedes GLS 4MATIC, encarcerados entre o volante e os assentos climatizados, cativos entre os estofos em pele e o teto que não abria, que não tinha vista para o céu com escadas de incêndio que vão dar às estrelas, nem vista para coisa nenhuma, prisioneiros de serem cegos, de tanto só verem caras, que provavelmente, nem distinguem corações.

Nessa noite não choveu, mas quase que jurava que ouvi sapos a coaxar.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 2 comentários