Retratos de Camões: da vera efígie às recriações românticas

Como muitos pormenores da vida (e da obra), também o rosto de Camões permanece incerto ou, pelo menos, envolto em nevoeiro. Não se conhece qualquer retrato seu feito no seu tempo.

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O retrato de Camões gravado por A. Paulus para integrar o capítulo dedicado a Camões em Discursos Vários Políticos, de Manuel Severim de Faria, editado em Évora em 1624, é a peça axial da definição da imagem do poeta. No seu texto, Manuel Severim de Faria afirma: “Neste retrato ficou Luís de Camões avantajado a qualquer grande estatua por maravilhosa que fosse, porq(ue) as estatuas não ocupam mais que um só lugar, e padecem também das injúrias do tempo, com as quais se acabaram até aqueles Colossos, com que os Antigos quiseram eternizar sua memória, porem as estampas tem aquela propriedade da pintura com a qual diz o mesmo Plinio que os homens se fizeram iguais aos Deuses, podendo estar juntamente presentes em toda a parte e por beneficio da impressão ficam isentos dos poderes do tempo. (…)”.

De acordo com Bernardo Xavier Coutinho (Camões e As Artes Plásticas, 2 vols., 1946), é deste retrato gravado que arranca toda a iconografia camoniana, centrada nos traços físicos que identificamos sobretudo pela barba e o olho vazado. Quanto à armadura, ela dá corpo plástico à auto-representação do poeta que se descreveu “nũa mão sempre a espada e noutra a pena”. Tinham passado mais de 40 anos sobre a morte de Camões, mas a bibliografia de época não menciona as fontes para tão clara definição da sua imagem, nomeadamente os primeiros biógrafos: nem Manuel Correia, que afirma ter sido amigo do poeta, nem Pedro Mariz que comprou o espólio daquele.

Todavia, o estado da questão alterou-se em 1925, quando Affonso de Dornellas proferiu uma comunicação na Academia das Ciências para apresentar o Retrato a Vermelho. Sobre base documental consistente, Dornellas divulgou que o Retrato era uma cópia realizada a pedido do duque de Lafões, em 1822, por Luís José Pereira de Resende, miniaturista e professor na Academia de Belas-Artes. O original provinha do Palácio da Anunciada, destruído pelo terramoto de 1755, e fora redescoberto “na livraria” do marquês do Louriçal, José Coelho da Silva.

Baseados na minúcia narrativa do achamento a partir dos documentos que Luís Pereira de Resende também copiou, o tema tem merecido a atenção de muitos investigadores, sendo de salientar os contributos de Vasco Graça Moura e Vítor Serrão, que justificaram a aquisição da obra pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e a sua incorporação no Arquivo Nacional Torre do Tombo.

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Retrato de Luís de Camões executado a sanguínea por Luís de Resende no século XIX, a partir de original de Fernão Gomes, 2.ª metade do sec. XVI Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo

Sem pôr em causa a “cópia fidelíssima” e a autoria de Fernão Gomes em relação ao original perdido, o tema carece de estudos mais aprofundados que visem elucidar dois factos: o desconhecimento absoluto deste retrato por parte dos primeiros biógrafos de Camões, nomeadamente Pedro Mariz e Manuel Severim de Faria; o desaparecimento do original, miraculosamente achado em 1822, logo depois da realização da cópia que possuímos. Apesar desta reserva, olho o Retrato a Vermelho como se fosse o original datado de 1571. O desenho propõe um belo fidalgo quinhentista, algo espanholado, a quem o olho vazado não desfeia, e ataviado — no corte de cabelo, na barba, e sobretudo no vestuário luxuoso — com uma imagem de distinção que irradia a partir dos traços austeros e bem delineados do rosto.

Não existe nenhum comentário epocal a este retrato e, portanto, nada sabemos sobre o cumprimento da sua verosimilhança, excepto, segundo notável proposta de Graça Moura, do próprio Camões! Afirma ele (Retratos de Camões, 2014) que as redondilhas Retrato, vós não sois meu confrontam, com humor e criatividade, o Retrato a Vermelho. Apesar de nos movermos numa espiral de hipóteses bastante labirínticas, não posso deixar de citar os primeiros versos:

Retrato, vós não sois meu;
Retrataram-vos mui mal;
Que, a serdes meu natural,
Fôreis mofino como eu.

Inda que em vós a arte vença
O que o natural tem dado,
Não fostes bem retratado,
Que há em vós mais diferença
Que do vivo ao pintado.
Se o lugar se considera
Do alto estado que vos deu
A sorte, que eu mais quisera;
Se é que eu sou quem de antes era,
Retrato, vós não sois meu.
(…)

Há de facto um fosso entre os testemunhos epocais, referindo a pobreza e abandono do poeta, e a imagem proposta pelo Retrato a vermelho, mas o que mais interessa realçar é a energia conceptual do poema, uma verdadeira teoria do retrato, que distingue o “natural” (o que ele objectivamente era) do “pintado” (o retrato) e do “mofino” que ele sabia ser (imagem psicológica de si mesmo). A diferença que mais lhe interessa é a última. Ele não se identificaria com o retrato não tanto porque o artista o representa mais belo do que era, mas porque lhe tira o que tem de mais próprio: o ser “mofino”, que, ainda que a desejasse, nunca tivera “sorte” (1).

Domingos António de Sequeira e A Morte de Camões

Depois de se ter exilado em Paris, na sequência da Vila-Francada que pôs fim ao primeiro período liberal em Portugal, Sequeira apresentou no Salon a pintura A Morte de Camões, um velho lançando os braços ao ar, depois de receber a notícia do desastre de Alcácer Quibir e do desaparecimento de D. Sebastião: “Pelo menos, exclama, erguendo-se no leito de morte, pelo menos morro com ela!” Um ano mais tarde, em 1825, o jovem Almeida Garrett publicava o seu Camões, narrando os últimos anos de vida do poeta em Lisboa, depois do regresso de Goa. No final usa a mesma exclamação que consta no catálogo do Salon, o que sugere, inquestionavelmente, que Garrett se inspirou em Sequeira, e que ambos realizam um retrato simbólico de Camões: o velho de Sequeira, sem nenhum dos atributos iconográficos que antes referi, é a metáfora deles próprios, também condenados ao exílio pela pátria que tanto queriam servir.

O quadro desapareceu, depois de ter sido enviado para o Brasil, como oferta a D. Pedro, o fundador, em 1822, da nova nação sul-americana, mas há alguns estudos preparatórios que permitem perceber a ousadia da opção de Sequeira.

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A morte e Camões, de Domingos António de Sequeira, desenho a carvão e giz branco sobre papel MNAA

Se Sequeira realizou um retrato simbólico de Camões, abandonado pela ingratidão da pátria, no final do século XVI, ecoando os sentimentos do pintor em 1823, outros artistas auto-representaram-se, com mais ou menos intencionalidade, num curioso processo de identificação que é própria da cultura romântica.

Em Camões na Gruta de Macau, de 1853, Metrass utilizou-se a si mesmo como modelo, representando no poeta a sua profunda desilusão pela falta de apoios à produção artística no âmbito da recém-fundada Academia Real de Belas-Artes. Camões, vestido mais à século XIX do que à século XVI, ocupa o lugar central da composição, sentado num rochedo e amparado a outro, mas há que atentar na figura que faz pendant ao herói e com ele contracena: o fiel escravo Jao, tratado com uma discrição e delicadeza femininas, tocado não pela inquietação da melancolia, mas pela virtude cristã da resignação.

Muito diverso é Camões e as Tágides, de Columbano Bordalo Pinheiro, de 1894, uma portentosa pintura com 243 por 293 centímetros. O artista afasta-se da iconografia corrente de que só mantém a barba, iludindo, pela posição do rosto, o olho cego. Disse-se, na época, que Columbano se inspirara no rosto do poeta João de Deus, mas o Camões que atrai e se deixa atrair para as Tágides é, fisionomicamente, bastante parecido com Columbano, se pensarmos, por exemplo, no auto-retrato No Meu Atelier, de 1884.

As Tágides têm, na pintura, um destaque idêntico a Camões. A ambiência de fina sensualidade gerada é surpreendente no trabalho de um artista predominantemente ensimesmado, dotando a composição de uma corografia dançante que metaforiza, com elegância, o culto do amor, tema central na obra camoniana.

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Camões e as Tágides (1894), de Columbano Bordalo Pinheiro Museu Nacional de Grão-Vasco

Entre muitas outras hipóteses, avanço com Camões, de José Malhoa, de 1906, que integra a Sala Camões do Museu Militar de Lisboa. Embora o pintor tenha utilizado um modelo, na minha opinião há no rosto uma evidente auto-representação diferida, valorizando, no vate, o destino de jovem fidalgo ousado que provocou a vida com a mesma energia com que soltou a imaginação e o génio artístico para celebrar a pátria.

Contra as aparências, defendo, finalmente, uma espécie de “semelhança” entre Camões de Malhoa e de Columbano. Ambos são fortes presenças masculinas, transbordando de energia física e erótica. Pelo que nos aproximamos do entendimento de Camões de João Figueiredo (Post-Imperial Camões, 2013) propondo que é tempo de o libertar da pátria para o entregar a si próprio.


1. O retrato psicológico de Camões foi brilhantemente sintetizado por Diogo do Couto que com ele privou na Índia: "Este homem teve sempre estrela de poeta que é serem todos pobres, e uma natureza terrível, e enfim pouca ventura”.

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