Português detido na República Centro-Africana acusado de incitar à revolta contra o regime

Funcionário de uma ONG sediada nos Estados Unidos foi detido por elementos do grupo paramilitar Wagner por alegada “conspiração”. Governo português está a “acompanhar presencialmente” o caso.

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O grupo paramilitar russo Wagner tem uma relação muito próxima com o poder na República Centro-Africana LEGER SERGE KOKPAKPA
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O Ministério Público da República Centro-Africana deteve esta sexta-feira um funcionário luso-belga de uma organização não-governamental (ONG) sediada nos Estados Unidos. O homem é suspeito de constituir uma ameaça à segurança do Estado e de incitar à revolta contra as forças de segurança.

Numa declaração lida na televisão estatal na sexta-feira, o Ministério Público (MP) da capital, Bangui, disse que Martin Joseph Figueira tinha passaportes português e belga e que tinha sido detido a 25 de Maio, depois da abertura de uma investigação.

O luso-belga foi detido por elementos do grupo paramilitar Wagner, que tem uma forte presença na República Centro-Africana (RCA) desde o final da década passada.

À detenção em Zémio, uma localidade na província de Haut-Mbomou, na fronteira com a República Democrática do Congo (RDCongo), no passado dia 25, seguiu-se um interrogatório e a abertura de um "processo judicial" contra o detido, que está a ser investigado por alegada “conspiração” contra o Estado em ligação com “grupos armados” rebeldes, segundo o procurador do MP centro-africano Benoit Narcisse Foukpio.

O procurador não deu pormenores sobre as acusações, mas acusou Figueira de estar em contacto com grupos armados, envolvido num complot contra o regime. "As primeiras investigações” mostram que o homem detido “esteve em contacto permanente com vários grupos armados (...) com vista a cometer uma conspiração, [um] atentado contra a segurança interna do Estado e actos de incitamento ao ódio e à revolta contra as forças de defesa e de segurança”.

O homem “é titular de dois passaportes”, português e belga, segundo o MP – mas com naturalidade portuguesa, segundo a imprensa local –, nos quais usa os mesmos nomes próprios, mas não o mesmo apelido, e apresenta-se “como consultor da ONG norte-americana” Family Health International 360 (FHI 360).

Fonte oficial do Governo português disse à Lusa que está a “acompanhar presencialmente” o caso.

“Estamos a acompanhar presencialmente o caso e com meios de subsistência – significa que somos nós que providenciamos comida. O número dois da Embaixada [de Portugal] em Kinshasa já o visitou, tal como o cônsul honorário [de Portugal] na República Centro-Africana”, disse à Lusa fonte do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).

O homem – “jovem”, segundo a mesma fonte - “está detido, suspeito de estar envolvido num complot contra o regime”, e “trabalha para uma organização não-governamental norte-americana”, informou o MNE português.

“Aguardamos pelos desenvolvimentos do caso”, concluiu a fonte oficial.

Acusado de transmitir informações de milícias locais aos rebeldes

O consultor luso-belga é acusado de “fornecimento de meios a grupos subversivos, de falsificação e utilização de falsificações” e “foi colocado à disposição da polícia judiciária de Bangui”, informou o MP centro-africano.

A pretexto do trabalho como funcionário da FHI 360, o detido recolheria junto da população local “informações sobre as operações das milícias locais”, que seriam depois “fornecidas aos rebeldes que lutam contra essas milícias”, designadamente a Azande, acusa a justiça centro-africana.

A FHI 360 confirmou à agência France Presse que um dos seus “consultores, que trabalha num programa de desenvolvimento comunitário em Zémio” está “detido pelas autoridades” na RCA.

Esta organização sem fins lucrativos tem uma forte presença em África e apoia programas de prevenção e tratamento do VIH/SIDA, cuidados materno-infantis, melhoria da educação e capacitação económica. Para o efeito, trabalha com os governos locais, as comunidades e outros parceiros para promover mudanças sustentáveis.

A detenção ocorreu no contexto de uma ofensiva do Grupo Wagner, apoiado pelas milícias locais Azande, contra um dos mais poderosos grupos rebeldes, a Union pour la Paix en Centrafrique (UPC).

O Corbeau News Afrique, um portal centro-africano de notícias língua francesa, escreve que o luso-belga foi detido pelos mercenários russos porque não tinha consigo os seus documentos de identidade. Os colegas do homem podiam tê-los fornecido aos mercenários, mas não o fizeram por receio de também eles serem presos.

A região de Haut-Mbomou está a “ferro e fogo” há vários dias e, ainda segundo o Corbeau News Afrique, a repressão da Wagner e dos milicianos Azande tem sido intensa. A sub-prefeita de Djema terá sido detida em circunstâncias semelhantes à do funcionário luso-belga, e, na passada terça-feira, 28 de Maio, os mercenários da Wagner convocaram para uma reunião os comerciantes muçulmanos de Zémio, que depois acusaram de possuir armas, encenando um pretenso desarmamento, que se "transformou em humilhação e violência", escreve a publicação.

Nas redes sociais, circulam em contas pró-russas ou próximas da Wagner mensagens com uma fotografia do trabalhador humanitário detido, dando conta de que o seu interrogatório terá revelado que o homem estava a trabalhar como “espião para o Governo dos Estados Unidos”.

Na quinta-feira, Washington impôs sanções económicas a duas empresas centro-africanas ligadas à Wagner, um grupo paramilitar “apoiado pela Rússia”, acusado de “cometer violações generalizadas dos direitos humanos e de apropriação de recursos naturais em vários países africanos”, segundo o Departamento do Tesouro norte-americano.

A República Centro-Africana, um dos países mais pobres do continente africano e que, desde a sua independência de França, em 1960, tem sido afectada por uma sucessão de guerras civis, golpes de Estado e regimes autoritários, é assolada por uma guerrilha multifacetada, conduzida por rebeldes ou grupos armados contra o exército apoiado por mercenários do grupo russo Wagner ou do seu sucessor, o Africa Corps.