Sector do vinho discute castas resistentes e o “paradoxo” português

Em Portugal é possível plantar castas resistentes, mas não se pode fazer delas vinho comercial. A Plansel, há mais de 40 anos a estudar a matéria, defende que Portugal deve seguir a Europa.

Foto
Jorge Böhm, o alemão fundador da Plansel, estuda o melhoramento genético da videira há quatro décadas Rui Gaudêncio
Ouça este artigo
00:00
14:27

A Plansel promove, a 7 de Junho, no Cineteatro Curvo Semedo, em Montemor-o-Novo, um simpósio internacional cujo objectivo é colocar o sector a discutir o potencial vitícola e enológico das castas resistentes. Variedades que resultam do cruzamento entre uma casta pertencente à espécie Vitis vinifera, aquela que comummente é utilizada hoje em todo o mundo para produzir vinho de qualidade, e uma casta de outra espécie do género Vitis e que têm, comprovadamente, maior resistência ao míldio e ao oídio, permitindo reduzir o uso de produtos fitossanitários, nocivos para o ambiente.

Porque é que o sector tem desconsiderado essas variedades? Ganharam má fama à conta das primeiras gerações de híbridos, que basicamente não prestavam para fazer vinho, já lá vão muitas décadas. E o “paradoxo”, para o qual o viveirista Hans Jörg Böhm — que descobriu Portugal em 1961 quando o seu veleiro naufragou no porto de Cascais — pretende chamar a atenção? Em Portugal, está autorizada a sua plantação, mas não a comercialização de vinhos obtidos a partir dessas vinhas (a excepção são as vinhas experimentais; mediante pedido fundamentado do viticultor, o Instituto da Vinha e do Vinho autoriza a produção e comercialização desses vinhos). “Somos o único país da Europa que não tem autorização [fora do tal período de experimentação]. Talvez o Liechtenstein esteja na mesma situação.”

A empresa fundada pelo alemão, que passou a assinar Jorge, soma quatro décadas a pensar numa matéria que, como até a tutela já admite, determinará in extremis o vinho do futuro. Böhm explica em três tempos a pertinência do tema. “Na Europa Central, países como a Alemanha e a França estão a plantar em grande volume estas novas castas para não usarem tantos pesticidas. Nesses países, já é possível vinificar. E o paradoxo em Portugal é que a DGAV [Direcção-Geral da Alimentação e Veterinária, que gere o Catálogo Nacional de Variedades de videira] autoriza que se plante a planta, mas para fazer vinho há uma segunda lista, de castas autorizadas pelo IVV [Instituto da Vinha e do Vinho].”

Não falamos de variedades como o Jaquet ou a Isabella (ou Americano), que ainda se vêem em muitas vinhas dos Açores e da Madeira e que, de resto, estão expressamente proibidas, no Regulamento da União Europeia n.º 1308/2013, como uvas para produção de vinho —​ tal como, já agora, as uvas Noah, Othello, Clinton e Herbemont. Quando se fala de híbridos hoje, das tais castas resistentes — lá fora, chamam-lhes PIWI, do termo alemão Pilzwiderstandfähig, que significa literalmente resistente a fungos—, estão em causa cruzamentos já de quinta e sexta gerações, conseguidos em laboratórios respeitados como o do Instituto Nacional de Investigação Agronómica francês, o Instituto Estadual de Viticultura de Friburgo e o do Instituto Julius Kühn, na Alemanha.

O Ministério da Agricultura e Pescas confirma, na informação de contexto que enviou como resposta às perguntas do PÚBLICO, que existem plantações de potenciais castas autóctones regionais resistentes já instaladas em campo, quer na Plansel quer no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária [INIAV], em resultado de dois projectos, entre 2018-2023, apoiados pelo Programa de Desenvolvimento Rural (PDR) e já terminados, onde a ciência procurou aproveitar os genes de resistência contidos em castas resistentes no Norte da Europa, através do melhoramento sexuado, com as nossas castas autóctones” — Alvarinho, Arinto, Castelão, Trincadeira, Fernão Pires, Verdelho, entre outras.

A Plansel, em Montemor-o-Novo, importou 40 das principais castas resistentes internacionais e tem trabalhado no sentido de conseguir uma variedade PIWI, como lhe chamam lá fora, de ascendência portuguesa Rui Gaudêncio
Pormenor do trabalho de melhoramento genético da videira que tem vindo a ser feito pela Plansel Rui Gaudêncio
Jorge Böhm numa das estufas da Plansel, no Alentejo Rui Gaudêncio
Fotogaleria
A Plansel, em Montemor-o-Novo, importou 40 das principais castas resistentes internacionais e tem trabalhado no sentido de conseguir uma variedade PIWI, como lhe chamam lá fora, de ascendência portuguesa Rui Gaudêncio

Revela a tutela que vêm aí mais verbas para que privados e academia possam continuar esse trabalho. A autoridade de gestão do Plano Estratégico da Política Agrícola Comum no continente encontra-se a preparar a operacionalização da próxima medida comunitária de apoio relativa à conservação e melhoramento de recursos genéticos vegetais. Acrescenta o Ministério da Agricultura que se iniciou recentemente” um projecto financiado pelo programa Horizonte Europa para melhoramento genético da videira e gestão integrada para reduzir a dependência de fitossanitários, em que o INIAV é parceiro.

O objectivo é continuar a fomentar a identidade Portugal, produzir vinhos com qualidade e dotar as vinhas nacionais de resiliência aos factores bióticos e abióticos locais, abrindo ao sector vitivinícola uma outra oportunidade de negócio para o futuro. Já que, recorda a tutela na sua resposta, a sustentabilidade, neste caso da nossa vitivinicultura, tem três moedas: “Económica, social e ambiental.

O ministério liderado por José Manuel Fernandes sublinha apenas que, em Portugal, não é autorizada a plantação destas castas resistentes para produção de vinho”, e mais não avança, ficando por esclarecer se o estatuto delas poderá mudar em breve. Há já uma excepção, com 12 anos, que a própria tutela admite, mas não explica. A do híbrido interespecífico Chambourcin, que entrou para a lista de castas autorizadas para a produção de vinho em 2012, mas que nada tem que ver como o nosso terroir vitivinícola. Segundo o Governo, apesar de autorizada para fazer vinho, não terá expressão em termos de área de vinha.

Jorge Böhm acompanha a preocupaçãodo sector quanto ao potencial de qualidade dos vinhos. Se importamos uma casta resistente da Alemanha, o risco é enorme. São 1300 quilómetros de diferença. Os climas são muito diferentes. O caso muda de figura se as plantas forem portuguesas, defende o economista de formação, que em 2006 Jorge Sampaio agraciou com o grau de comendador da Ordem de Mérito Agrícola.

Castas resistentes e portuguesas

A empresa viveirista obteve recentemente a casta resistente Defensor (variedade branca), que a Plansel já vinifica e engarrafa — esse vinho tem Indicação Geográfica Protegida e foi certificado pela Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA). Pode fazê-lo porque tem uma autorização temporária, explica Jorge Böhm. Um enquadramento legal que o Ministério da Agricultura confirmou ao PÚBLICO: “Foi requerida ao IVV uma autorização de plantação para fins experimentais, a qual se encontra atribuída aos Viveiros Plansel desde 29 de Outubro de 2021, para 4,3 hectares [de vinha], encontrando-se válida até 29 de Outubro de 2024. Esta autorização permite a plantação para fins experimentais e os produtos vitivinícolas obtidos a partir dessas uvas poderão ser comercializados durante o período de duração da experimentação.

Mas a Defensor foi, e é, só um ponto de partida. É material vinícola que em 1984 importámos de Geisenheim [na Alemanha, e a primeira universidade a trabalhar com castas resistentes]. É Riesling [uma variedade alemã] com castas híbridas francesas e é 98% Vitis vinifera, nota Jorge Böhm, sublinhando que nos PIWI actuais o material genético proveniente de castas resistentes nunca ultrapassa os 5%.

Foto
Plantação nova na Plansel, empresa que já vinifica (tem uma autorização temporária do IVV) vinho da primeira casta resistente obtida em Portugal Rui Gaudêncio

Através do tal PDR, o instrumento utilizado pelos Estados-membros da União Europeia para aplicar o dinheiro do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (Feader), a Plansel plantou este ano os primeiros 50 candidatos de castas resistentes nacionais, descendentes da Touriga Nacional e do Alvarinho, com genes de resistência ao míldio e ao oídio, comprovados por análise molecular (teste de PCR) na Universidade de Évora, e outros 150 genótipos em fase de propagação.

Na mesma parcela experimental, Böhm já tinha, em produção de uvas, 40 das principais castas resistentes da Alemanha, França e Suíça, variedades que permitiram chegar aos tais candidatos lusos. Esses híbridos serão ainda submetidos a um processo de selecção de potenciais novas castas. As melhores vão ser plantadas em dois ou três lugares, com a supervisão do IVV. Para fazer experimentação, adianta Böhm.

O viveirista quer evitar que o facto de as novas castas resistentes internacionais não corresponderem à marca Vinho de Portugal”, aliado aos preconceitos do passado com as [variedades] híbridas francesas, [então] sem qualidade enológica, inquine a discussão. E a empresa está de tal forma empenhada nas castas resistentes que tem ainda uma plantação de sementes (grainhas) com 600 plantas, que vai no terceiro ano, de onde Jorge Böhm espera que saia outra meia centena de candidatos.

Quase um século de investigação

O melhoramento genético da videira não é um assunto novo em Portugal. Nos anos 1950, D. Pereira Coutinho, que era professor do Instituto Superior de Agronomia, fez vários cruzamentos e obteve diferentes variedades [resistentes], que foi preservando à medida que percebia que interessavam. Que é o que nós estamos a fazer agora, relata Jorge Cunha, investigador auxiliar no INIAV, responsável no Pólo de Dois Portos (Torres Vedras) pelos recursos genéticos vitícolas e curador da colecção ampelográfica nacional.

E muito antes de Pereira Coutinho, já depois de a filoxera ter dizimado vinhas em Portugal e por toda a Europa, na segunda metade do século XIX, houve tentativas de melhoramento. Antes da década de 1950, houve muitos retrocruzamentos – hibridação de uma planta F1 (primeira geração, descendente de um cruzamento entre duas Vitis vinifera) com um dos seus progenitores. À medida que se foi estreitando a malha, foram seleccionados aqueles descendentes que apareceram como sendo mais resistentes, explica o investigador.

Os breeders, ou melhoradores, aproveitaram essas plantas e cruzaram-nas com castas dos seus países de origem, continua Jorge Cunha, que defende que devem ser feitos mais estudos com vista à selecção de castas resistentes que sirvam o interesse nacional. Que sejam resistentes ao míldio e ao oídio, mas que se adaptem ao nosso clima, e às alterações climáticas, que tenham características agronómicas e enológicas interessantes para o sector.

Jorge Cunha é investigador auxiliar no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária e responsável pelos recursos genéticos vitícolas no Pólo de Dois Portos, onde faz hibridações desde 2007 Rui Gaudêncio
Na Estação Vitivinícola Nacional, em Dois Portos, o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária plantou em Abril 150 plantas, de onde espera seleccionar quatro castas resistentes de ascendência portuguesa Rui Gaudêncio
Pormenor da plantação de castas resistentes feita em Abril pelo INIAV no Pólo de Dois Portos Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Jorge Cunha é investigador auxiliar no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária e responsável pelos recursos genéticos vitícolas no Pólo de Dois Portos, onde faz hibridações desde 2007 Rui Gaudêncio

A Plansel pode estar mais avançada no seu trabalho de melhoramento genético da videira, mas no INIAV também se faz selecção. Jorge Cunha só começou a fazer hibridações em Dois Portos em 2007. Cruzou Vitis vinifera da subespécie silvestris“existe pelo menos há 400 mil anos na Península Ibérica —, com Touriga Nacional e o resultado, partilha, “é bastante interessante. “Tenho ali um campo com 400 variedades [saídas desse cruzamento]. E futuramente poderemos aproveitá-las para obter variedades cultivadas. Em Abril, o responsável conseguiu plantar no campo cerca de 150 plantas, material vegetativo para multiplicação e resultante de um trabalho iniciado em 2020. De 3000 grainhas germinadas, ou seja, 3000 potenciais variedades resistentes, foram seleccionadas 150.

Neste projecto do INIAV (o outro projecto apoiado pelo PDR), o objectivo é ter, dentro de algum tempo, duas castas brancas e duas tintas de ascendência portuguesa e com resistência ou tolerância às doenças criptogâmicas, míldio e oídio. Uma futura obtenção herda 50% da casta resistente estrangeira, que por sua vez já tem ADN de Vitis vinifera, e os outros 50% da casta autóctone, explica Jorge Cunha. Só assim será possível, no futuro, afirmar: esta casta é filha da Touriga Nacional. E associar a marca do território à origem, conclui.

Plansel e INIAV colaboram desde 2017, com a estação nacional a ceder pólenes de variedades que fazem parte do Catálogo Nacional de Variedades de Videira (CNVV) e a Plansel a utilizar hoje técnicas de melhoramento genético que o INIAV ajudou a aprimorar. Também foi feito em Dois Portos trabalho de biologia molecular no âmbito do PDR da Plansel.

Processo é demorado, mas já foi mais

Só ao terceiro ano de instalação no campo é que uma variedade dá uvas e é possível colher dados. Esse estudo tem de ser feito nos três anos seguintes. E só depois de reunida essa colecção de dados agronómicos é que o obtentor pode registar a nova variedade no CNVV. E isso ainda não é a autorização para vinificar, engarrafar e vender. Um caminho longo, portanto, mas que hoje em dia se faz mais depressa.

No passado, eram precisos 25 anos para registar uma destas castas. Actualmente, esse período que medeia entre a obtenção de uma grainha e a comercialização de uma variedade é mais curto: entre 12 e 16 anos. Tudo graças à biologia molecular e ao aperfeiçoamento das técnicas de melhoramento genético da videira.

Um dos protocolos mais antigos da Plansel é com a Universidade de Évora, precisamente para a microvinificação (idealmente em mais do que um ano vitivinícola) e para os ensaios enológicos (e, a montante, a análise ainda dos bagos). A universidade está, por agora, sobretudo empenhada na componente aromática dos vinhos, como explica Maria João Cabrita, responsável pelo Laboratório de Enologia Colaço do Rosário e vice-directora do Instituto Mediterrâneo para Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento.

A equipa de Maria João Cabrita tem vindo a identificar e dosear os compostos voláteis varietais destas novas castas, para perceber se os metabolitos secundários que dão tipicidade às nossas castas se mantêm nestas novas castas. A probabilidade de que com estas castas venhamos a conseguir vinhos com aromas bastante simpáticos existe, afirma a investigadora, acrescentando que, nos tintos, os colegas também analisam os componentes responsáveis pela cor.

Augusto Peixe, pró-reitor e responsável pelo Laboratório de Melhoramento e Biotecnologia Vegetal na Universidade de Évora, lembra que a viticultura na Europa representa mais ou menos entre 6% e 8% da área cultivada e consome entre 60% e 75% de todos os fungicidas. Não é sustentável no futuro, vaticina. Nem no presente, com a crise climática que o mundo atravessa.

O objectivo não é substituir as nossas castas de referência e importantíssimas, que fizeram e caracterizam as regiões demarcadas, ressalva Augusto Peixe, mas as resistentes poderiam servir para a produção de vinho com selo IVV, exemplifica, recordando que o vulgo vinho de mesa é uma percentagem importante da produção de várias regiões. Com certeza que conseguiremos vinhos melhores do que os que estão no mercado e estaríamos a reduzir o impacto da nossa viticultura.

A Universidade de Évora está a instalar uma parcela experimental, uma vinha para ensaio, com dez a 20 plantas de cada uma das novas castas, com repetições, em volume suficiente para vinificar, explica Augusto Peixe, dizendo que o objectivo é estudar a sua performance agronómica e fazer a selecção das melhores". Mas, nota, para que tal seja uma realidade tem de haver financiamento.”

Além dos investigadores ouvidos pelo PÚBLICO e do próprio Jorge Böhm e da sua filha Dorina Lindemann, passarão pelo simpósio da Plansel Cristina Menéndez (responsável do Instituto de Ciências da Videira e do Vinho de Logronho e professora na Universidade de Rioja) e Oliver Trapp (director-adjunto do Instituto Julius Kühn), que abordarão o melhoramento de novas castas resistentes em curso em Espanha e na Alemanha, respectivamente.

Está prevista a presença de representantes de diferentes entidades do sector, da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana ao próprio IVV, passando pela Associação Técnica dos Viticultores do Alentejo. E haverá um momento de prova de vinhos feitos destas castas (os tais ensaios enológicos) e visita aos ensaios de campo. A inscrição é gratuita e pode ser feita no site da empresa, onde consta também o programa detalhado do evento.

Sugerir correcção
Comentar