Francisco Assis: “Sem imigrantes a economia entrava em colapso”

Diz que são “criminosos” os que associam os imigrantes à violência. Para Assis, o Governo tem a estratégia de provocar uma crise política na votação do Orçamento para depois fazer-se de vítima.

Francisco Assis já foi eurodeputado 10 anos e foi cabeça-de-lista em 2014, no tempo em que ainda António José Seguro era secretário-geral do PS. Crítico da geringonça, António Costa pô-lo no "banco" durante os oito anos em que foi líder. Hoje, é o número 2 da lista do PS ao Parlamento Europeu.

É o segundo convidado do podcast A minha família é melhor que a tua e esta entrevista é um resumo do que lá foi dito e foi feita antes de Portugal se juntar à coligação de países que apoiam que a Ucrânia possa atingir alvos russos com armas ocidentais. No primeiro episódio, que pode ouvir aqui, a entrevistada foi a número 3 da lista da AD, Ana Miguel Pedro, do CDS.

Leia a transcrição editada da entrevista:

Conhecemos Francisco Assis de ter sido eurodeputado, líder parlamentar, candidato a presidente da Assembleia da República e presidente do Conselho Económico e Social. Quem é o Francisco Assis que nós não conhecemos? Quando é que se começou a interessar por política?

O meu interesse pela política é muito remoto. Tem que ver, talvez, com a circunstância de ter nove anos quando se deu a Revolução de 25 de Abril de 74 e o acontecimento foi tão extraordinário que teve reflexos em cada um de nós, mesmo nas crianças, na altura.

E levou-me, desde essa ocasião, a ter um grande interesse por todas as discussões da natureza política e todo o meu percurso depois foi muito marcado pela preocupação com o fenómeno político.

Fui sempre, na adolescência, um grande leitor de tudo que tivesse que ver com a dimensão política, do ponto de vista histórico, das ideias, da ciência política. Talvez a única coisa em que eu fui verdadeiramente precoce foi nesse domínio.

Aos 13 anos já lia ciência política?
S
im, já lia bastantes ensaios políticos por uma razão circunstancial. A minha mãe era professora do ensino secundário. Era licenciada em Direito e teve que dar aulas de introdução à política, logo no ano lectivo a seguir à revolução. E para isso teve que se dotar, ela própria, de uma pequena biblioteca de livros sobre política e tinha de tudo. De certa maneira, também era uma aprendizagem que ela estava a fazer naquela circunstância histórica. E isso levou a que eu convivesse, desde muito cedo, desde os 9, 10, 11 anos, com muitos desses livros. Convivesse no sentido de que até os lia, provavelmente sem perceber muito bem o que é que estava a ler na altura.

O acaso tem muito impacto na vida das pessoas. Aos 15 anos já tinha uma consciência política bastante formada e faço algumas opções decisivas. Estudei num colégio católico e tornei-me agnóstico. Também foi um momento em que entendi que a minha família política era a esquerda democrática. Com 15 anos foi quando comecei a participar activamente nas campanhas do Partido Socialista.

A partir dos 19 ou 20 anos, andava na faculdade, andava a estudar, tornei-me militante e a partir daí tive um envolvimento muito, muito grande na vida partidária, que só se interrompeu, de alguma forma, nos últimos anos, entre 2014 e 2023, por razões que são conhecidas. Mas nunca deixei de apoiar o PS.

Vários países ocidentais defendem que as armas que são oferecidas à Ucrânia sejam utilizadas para atingir alvos russos. O que pensa desta hipótese?
Devemos ter alguma cautela nesse domínio. Tudo o que signifique uma escalada da guerra tem que ser profundamente ponderado.

Mas há cada vez mais países da UE a defender a isto.
É um assunto complexo, estamos a falar de uma guerra na Europa. A Comunidade Económica Europeia surge como um projecto que visa garantir a paz, evitar qualquer conflito entre os países europeus. Isso realmente foi bem sucedido, nunca mais houve nenhuma guerra entre países europeus que integraram a CEE e depois a União Europeia.

Mas temos hoje uma guerra no espaço europeu.
Não podemos ignorar que a Rússia é um país euroasiático, mas predominantemente europeu. É um conflito particularmente desgastante, porque, de certa maneira, existe no interior do próprio mundo ocidental, considerando que a Rússia faz parte, com as suas singularidades, que são muitas, faz parte desse mundo ocidental. E numa altura em que o Ocidente tem vindo, naturalmente, a perder influência e poder no mundo. E eu digo naturalmente porque o que foi extraordinário foram os 400 ou 500 anos em que nós tivemos um peso enorme no mundo, muito superior àquilo que era a nossa expressão demográfica, por exemplo.

O PPE tem no seu manifesto uma espécie de “política Ruanda” que tinha o Reino Unido, um projecto de exportar cidadãos requerentes de asilo para países terceiros fora da União Europeia. O que é estranho é que o próprio governo socialista dinamarquês é um precursor disto. Temos aqui um berbicacho relativamente aos valores europeus.
Os valores europeus continuam presentes. A Europa, como todos os espaços civilizacionais, tem contradições e incoerências. A Europa tem lados luminosos e tem lados sombrios. Nada é linear e nada é absolutamente claro. A própria Europa do iluminismo em nome dos valores do iluminismo também foi a Europa do colonialismo.

O colonialismo também se fez, a dado passo, em nome desses valores. Portanto, o que há de melhor, por vezes, também transporta consigo o que pode haver de pior. Nada é linear, nada é simples. Nos tempos contemporâneos é mais visível uma certa tendência para o simplismo. O simplismo é a vitória da estupidez sobre a inteligência que é necessária para tentar compreender os fenómenos na sua complexidade.

Há sempre pontos sombrios, há sempre coisas que não estão bem, há sempre coisas que deveriam ser diferentes. Nunca viveremos num mundo absolutamente perfeito, onde estes valores se afirmam de forma absolutamente clara e indiscutível. E hoje temos um tema sério no espaço europeu, que é o tema das migrações. E que tem levado alguns países a adoptarem posições que não merecem a minha concordância, nem a concordância da generalidade dos socialistas europeus, e até julgo eu, da generalidade das pessoas do centro-direita democrático europeu.

Acho que é inaceitável que o centro-esquerda e a esquerda democrática e o centro-direita e a direita democrática europeias cavem um fosso entre si. Isso é altamente negativo. Eu até considero isso, já várias vezes o disse, criminoso. Porque a Europa, o projecto europeu, só é viável na base de um entendimento de fundo entre as grandes famílias políticas que tenham em comum a fidelidade aos princípios da democracia liberal.

A imigração parece ser o tema destas europeias
A Europa precisa de imigrantes. Vamos admitir, fora de qualquer juízo moral ou ético, vamos pôr a questão limite, que é a de “não entra nem mais uma pessoa”. Isso é absolutamente impossível. A Europa precisa de imigrantes e Portugal precisa de imigrantes.

Fui presidente do Conselho Económico e Social durante os últimos três anos e meio. E vi, variadíssimas vezes, os representantes nas reuniões da concertação social, os presidentes das confederações empresariais, da indústria, do turismo, do comércio e serviços da agricultura, apelar ao governo para que o governo fosse tomando providências no sentido de garantir a vinda mais fácil de imigrantes para Portugal, sob pena de alguns sectores da nossa actividade económica, pura e simplesmente entrarem em colapso.

O simples exercício teórico é este. Vamos imaginar que durante oito dias, quinze dias, os imigrantes, as pessoas não portuguesas que estão a trabalhar em Portugal decidiam parar de trabalhar. A nossa economia entrava em colapso. Imediatamente. Teríamos imensas reservas, explorações agrícolas que, por aí simplesmente, faliam. Várias indústrias deixavam de trabalhar, no comércio e serviços a mesma coisa. E até no turismo. Nós estamos num processo de recuo demográfico. Essas coisas não se resolvem assim facilmente. Há razões culturais, civilizacionais para esse recuo demográfico. Portanto, precisamos absolutamente de imigrantes. Em segundo lugar, a ideia de que nós vamos agora aqui escolher os imigrantes é completamente absurda.

A ideia de que nós precisamos de imigrantes altamente qualificados… é bom que venham pessoas altamente qualificadas, mas a verdade é que não é essa a preocupação fundamental dos nossos agentes económicos. Eles precisam de pessoas para trabalhar na indústria, pessoas para trabalhar nos restaurantes, nos cafés, nos hotéis, para trabalhar nas explorações agrícolas.

Agora, tem que haver uma preocupação com a integração dos imigrantes na sociedade portuguesa. E esse é um desafio que hoje se coloca a toda a Europa e que se coloca também a Portugal. Nenhum governo pode deixar de perceber esta como uma questão prioritária.

Este processo nos primeiros anos é sempre um pouco traumático. Há dificuldade em lidar com o outro. Com tudo que é distinto de nós próprios. O nosso limite é a nossa pele. A partir daí, tudo já nos é um pouco... Um pouco estranho.

Não se combate a extrema-direita lançando anátemas uns contra os outros, fazendo crer que uns estão a fazer algum serviço ou algum favor à extrema-direita. Combate-se a extrema-direita combatendo mesmo a extrema-direita. Porque essa, sim, é criminosa. O que se faz, por exemplo, quando em Portugal se tenta insinuar que há uma ligação entre a violência e a imigração, é criminoso.

Os imigrantes são pessoas muito frágeis. Nós somos um país de imigrantes. Todos conhecemos pessoas que tiveram que emigrar há muitos anos.

E muitas vezes pagavam às redes de tráfico da altura.
Tudo que estas pessoas estão agora a passar os portugueses passaram. Temos especiais responsabilidades também agora em perceber... Em tratar bem os que vêm para cá. Estas pessoas estão longe do seu país, estão longe do ambiente em que cresceram, em que se formaram, estão longe da sua família. Estão obviamente muito vulneráveis. Tentar lançar o anátema sobre essas pessoas de que a violência lhes está associada é criminoso. Isso é tão criminoso como roubar alguém. É incitar à violência em relação aos mais frágeis.

Isso é das coisas mais deploráveis, mais vergonhosas, mais vis, que é possível fazer na vida política. Neste momento é preciso enfrentar fortemente a extrema-direita, que é uma ameaça enorme à democracia e aos princípios fundamentais de uma Europa civilizada, tal como a maioria dos europeus certamente a entendem.

Esta semana vimos o PS Madeira a propor uma alternativa de governo, uma espécie de geringonça que incluiria o CDS e a Iniciativa Liberal. Pedro Nuno Santos veio, aliás, apoiar Paulo Cafofo. Como viu pareceu esta geringonça? O Francisco foi contra a anterior geringonça.
Fui contra em 2015. Nunca olhei com bons olhos pela sua origem, pela forma como se fez. Mas reconheço que há uma grande diferença entre o que aconteceu aqui na altura, na Assembleia da República. Porque havia, de facto, uma maioria. E tanto havia que ela funcionou.

Esta questão da Madeira, confesso, causou-me uma enorme surpresa. Se há coisa que ficou evidente é que os madeirenses demonstraram que não confiavam no PS como um partido de alternativa à actual situação. Ficou claro que o PS não foi percebido como uma alternativa.

É uma questão que o PS tem que reflectir profundamente, porque o PS tem que ser uma alternativa na Madeira. Como foi, a seu tempo, nos Açores e como é em todas as regiões do território nacional e como a direita também é, quando nós estamos no poder, alternativa.

Isso é fundamental, não é normal uma região na Europa ser dirigida durante 50 anos pelo mesmo partido político. Alguma coisa está mal aí. O PS, de facto, não tinha grande legitimidade para solicitar a liderança de um governo regional, apresentar uma solução que era uma solução que não tinha qualquer viabilidade. Pareceu uma coisa estranha, um desvario completo

Uma das coisas que me impressionou foi o secretário-geral do PS vir a apoiar essa solução.
Ouvi as declarações do secretário-geral do PS, não percebi nessas declarações um apoio. O que ele disse foi que é nos parlamentos que se constroem as maiorias. Julgo que o secretário-geral do PS ficou tão estupefacto como eu com o que se estava a passar naquele dia na Madeira.

Foi uma alucinação socialista madeirense.
Sim, foi um mau momento, mas enfim, passará.

O Presidente da República está a apelar continuamente a que o PS viabilize o orçamento do Governo. O secretário-geral do PS veio dizer que recusava pressões, que não eram as pressões que iriam fazer com que o PS decidisse o sentido de voto. No passado, Francisco Assis defendeu viabilizações de orçamentos entre PS e PSD quando não há maiorias. Considera possível que esta abstenção que aconteceu nos Açores agora venha a ser importada para a República?. Qual é a sua inclinação?

Em primeiro lugar, devo dizer que concordo inteiramente com as considerações que o secretário-geral do PS fez em relação às declarações do Presidente da República. Não acho que seja admissível que se façam essas declarações em praça pública. O Presidente da República, se quer exercer algum poder de influência, deve fazê-lo com algum recato. Até porque as possibilidades de ser bem-sucedido são maiores.

Em relação à questão do orçamento, temos que esperar. Algumas coisas vão suceder daqui até lá, não sabemos qual é a evolução sequer do cenário internacional.

Há algumas coisas que é preciso dizer. Parece-me evidente que o Governo tem estado preocupado em posicionar-se numa perspectiva de criação de uma crise política. Aparentemente, o PSD e o Governo fizeram uma opção estratégica de tudo fazer para que haja eleições.

E, nesse sentido, um Governo que se deveria preocupar em construir condições de estabilidade política e de estabilidade governativa, a meu ver, está mais preocupado em criar condições de instabilidade política para depois aparecer como uma vítima numa eventual crise política e assim se apresentar aos portugueses numas eventuais eleições antecipadas, no início do próximo ano.

Parece-me clara essa opção. O PS também não pode ficar prisioneiro das opções estratégicas do PSD.

E, até por isso, não temos nenhuma vantagem em estar, neste momento, a antecipar em absoluto uma posição em relação à questão do orçamento do Estado. Não é só o orçamento. O PS tem que apreciar as condições políticas, as vantagens e as desvantagens que poderiam estar associadas ao surgimento de uma crise política em Portugal com a consequência de convocação de novas eleições. É uma análise que terá que ser feita com ponderação na altura própria.

O Francisco também desistiu das eleições presidenciais.
Eu não desisti de uma coisa que nunca tinha afirmado que iria fazer.

Disse que não excluía. Agora exclui?
O não excluir qualquer coisa não é a mesma coisa que dizer que quero desempenhar essa função. Eu sou candidato ao Parlamento Europeu. O que se vai passar na Europa nos próximos cinco anos vai determinar grande parte do que vai ser a Europa nos próximos 20, 30, 40 anos. O meu horizonte é ser cinco anos deputado no Parlamento Europeu.

O secretário-geral disse que o PS, desta vez, iria ter um candidato presidencial.
Também defendo isso. Primeiro, tem que haver alguém que manifeste uma grande disponibilidade e uma grande vontade de desempenhar essa função. E essa vontade tem que ter razões políticas, fundamentalmente. E, depois tem que haver da parte do Partido Socialista uma avaliação, se essa é ou não é a personalidade que está em condições de ser apoiada pelo Partido Socialista. Eu estou convencido que as duas coisas acontecerão e o PS vai ter um candidato bom à Presidência da República.


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