Comprar um Barca Velha antigo custa tanto como comprar a última colheita. Porquê?

O tempo só ajuda a valorizar os primeiros Barca Velha, os dos anos 1950, e sobretudo por uma razão de coleccionismo. As colheitas dos anos 60, 70 e 80 custam praticamente o mesmo que o novo 2015.

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dro Daniel Rocha - 29 maio 2024 - PORTUGAL, Lisboa Colheitas antigas de Barca Velha Daniel Rocha/PUBLICO
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Em Portugal, não temos cultura — não uma cultura disseminada — de comprar vinho como quem faz um investimento, para mais tarde o vender por três, quatro, muitas vezes mais. Nem quem tem vinhos velhos e raros abre a boca na hora de estabelecer um preço hoje para esses tesouros, porque sabe que o consumidor tem medo de arriscar. O vinho tanto pode estar bom como estragado. É uma roleta russa — pese embora as probabilidades de estar bom aumentem nos casos em que foi bem guardado.

A Sogrape e a sua Casa Ferreirinha lançaram há dias, no Paço Ducal de Vila Viçosa, o 'novo' Barca Velha, a 21.ª colheita, de 2015, e anunciaram um preço base de 860 euros. Um vinho poderoso e elegante, do Douro, que cheira a Douro. Que, diz quem provou várias das últimas edições do mais conhecido vinho português, está entre a fruta madura e a boca sedosa do 2011 e a elegância e frescura do 2008. Mas que para esta autora, sendo um grande, grande vinho, não é, aos dias de hoje, uma experiência sublime — esta estreante culpa as expectativas, que eram do mais elevado, mas fica muito curiosa para saber como estará o Barca Velha quando chegar à idade do magnífico Quinta da Leda tinto 1999 que foi servido imediatamente antes; também estranhou sentir a madeira no vinho. O Barca Velha não vai, de resto, em modas, sejam elas más ou boas (como é o caso da tendência que explora outros perfis para o DOC Douro) — segundo o enólogo Luís Sottomayor, apesar de ser hoje "um vinho mais moderno", "o [seu] perfil não muda". É preciso recuar à década de 1950 para ver preços de coisa rara, e sobretudo porque esses primeiros Barcas Velhas são comprados por coleccionadores. As colheitas dos anos 60, 70 e 80 custam praticamente o mesmo que o ‘novo’ 2015.

Numa pesquisa rápida online, é possível perceber que o 2011, a penúltima colheita a ser lançada, não está muito mais caro que o 2015. Mesmo tratando-se de um ano que deu bons vinhos de Norte a Sul do país. Em garrafeiras de referência, encontramos a garrafa de 0,75L a preços que vão dos 899 aos 960 euros e uma magnum (1,5L) a 1.990 euros. O 2008 surge em quase todos os resultados quase sempre acima do valor do 2011 (o ano excelente, recorde-se, e que, para alguns no sector, está para nós como o 1982 para Bordéus), embora aconteça haver quem o venda muito abaixo (encontrámos uma garrafeira que o vendia a 599 euros) ou muito acima disso (e outra que o lista por 1.600 euros). Com o 2004, ainda são mais díspares os resultados.

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Uma magnum (1,5 litros) de Barca Velha 2011 na Garrafeira Nacional custa 1.990 euros Daniel Rocha

De 2000 encontrámos magnuns a 1.990 euros, nem um euro a mais do que o vinho 11 anos mais velho. Até aos anos 1990 ainda encontramos valores próximos do preço base do Barca Velha 2015, embora ligeiramente abaixo. Uma magnum de 1991, por exemplo, é anunciada por 1.790 euros. Mas é nos Barcas Velhas da década de 1980 que percebemos uma maior depreciação: um 1985 a 690 euros, um 1983 a 850 euros, o 1982 e o 1981 a 799 euros numa das garrafeiras online que espreitámos.

A década de 1970 só deu à garrafa uma colheita, o 1978, que já surge um bocadinho mais valorizado (mais uma vez se olharmos ao preço base anunciado para o 2015): 890 euros (0,75L). Os 'sessentas' custam mais de 850 euros. E, entre os primeiros Barcas Velhas, encontrámos um 1957, 0,75L, a custar nada mais, nada menos do que 3.950 euros.

"Os da década de 1950 são muito, muito raros. E estou convencido que o 1952 [o primeiro Barca Velha de sempre] ainda é mais", comenta Jaime Vaz, dono da Garrafeira Nacional, onde vimos o tal exemplar a quase 4.000 euros. Jaime lembra-nos que não podemos olhar só ao preço do vinho aos dias de hoje. "O 1964, já não me lembro muito bem, se calhar porque foi o ano em que nasci, mas custava meia dúzia de escudos. Hoje vale 1.000 euros. Obviamente, houve uma valorização muito grande."

Há outro detalhe: em tempos idos, circulou mais Barca Velha no mercado, ou nos vários mercados (mas já lá vamos). Ou seja, o próprio vinho já foi menos raro do que é hoje — é verdade que outrora não tinha grande companhia no patamar dos grandes vinhos portugueses, hoje há mais concorrência, embora com menos história para contar.

“Nessa altura fez-se muito vinho, chegaram a produzir 80.000 garrafas [de Barca Velha], precisamente na altura em que as pessoas não consumiam. Agora, o vinho esgota quando é lançado", nota Jaime Vaz.

Não consumiam mas "guardavam". "As pessoas antigamente compravam Barca Velha e guardavam", torna o negociante, terceira geração à frente da Garrafeira Nacional. Dependendo de como o guardavam, encontram-se ainda hoje em colecções privadas belíssimos exemplares de Barcas Velhas antigos. "O vinho gosta de estar quietinho." E é uma sorte quando se encontram em garrafeiras particulares essas 'pomadas'. Do 1966, partilha Jaime Vaz, "é raro encontrar uma garrafa que esteja muito evoluída" — "abri um há dias e estava brilhante; se tapasse a data e me dissesse que era dos anos 1980 eu, se calhar, dizia que sim" —, com as outras colheitas dos anos 60 e mesmo com as primeiras é preciso ter cuidado.

"Os dos anos 50 são procurados pelo factor coleccionismo. Há pessoas dispostas a pagar milhares de euros para ter a colecção completa, não é para consumir", refere, por seu turno, o gerente da Estado D'Alma. Tiago Paulo conta que "a maior compra" que fez a um particular foi precisamente aos herdeiros de um senhor que coleccionava Barca Velha e tinha cerca de 90 garrafas de diferentes anos.

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Sérgio Ferreira

"A partir dos anos 60, 70, 80 há uma desvalorização, porque há um factor de risco. E nós aqui não podemos dar garantias, porque estes vinhos são muitas vezes adquiridos nas tais colecções privadas. A partir do 1985, os preços começam a subir." Não só porque essas produções eram de algum volume (para a dimensão do mercado nacional, entenda-se), como as pessoas entendem ser menos arriscado beber um vinho tranquilo tinto com menos de 40 anos. Apreciam essa idade, até. E as notas de evolução que ela aporta ao vinho.

A escassez, já se percebeu, é um facto que influencia o preço. Também explica a disparidade de preços para a mesma colheita, às vezes a própria flutuação no mesmo comerciante. "Hoje pode ver um preço para determinada colheita, mas se eu comprar 24 garrafas, amanhã vai ver outro, porque se eu tenho mais garrafas baixo o preço", explica Tiago Paulo, cuja garrafeira recebe por norma, "por ano civil", e enquanto durar o rateio praticado na origem, seis garrafas. Só seis. Para ter mais vinho, negociantes como a Estado D'Alma têm literalmente de se mexer no mercado paralelo.

Compram a particulares mas também a outros negociantes, sobretudo lá fora, onde o preço pode não ser muito mais simpático mas não estão 'obrigados' a comprar mais referências do portfólio do produtor. Curiosidade: antes do Brexit, Inglaterra era um bom mercado secundário para arranjar Barca Velha.

Tiago Paulo, como outros que aguardam "o mais emblemático vinho português", ainda não recebeu o 2015, mas já estranhou o preço base comunicado e prefere aguardar pelo valor final pós-fatia da distribuição. "Se me dissessem que vai custar 1.100 euros no Natal, não acharia chocante. Será perfeitamente normal e acho que o mercado está preparado para pagar isso pelo Barca Velha."

Lá fora, mais do que estarem preparados para pagar isso por um vinho icónico, os consumidores informados "pensam duas vezes quando vêem um vinho destes a menos de quatro dígitos", nota Cláudio Martins, CEO na Martins Wine Advisor. Consultor e produtor de vinhos (No Rules Wines, Dão), Cláudio é conhecido como o tipo que começou a vender vinhos portugueses a preços estratosféricos. Entende que, dada a notoriedade do Barca Velha, um reconhecimento que é "sobretudo doméstico", o preço base a que a Sogrape coloca no mercado o 2015 "está bem", mas, diz, para si, este "seria sempre um vinho acima dos quatro dígitos".

"Poderiam alavancá-lo um bocadinho mais. Se fosse 1.000 euros, quem quer mesmo adquirir adquiriria. E haveria a oportunidade de [o Barca Velha] se colocar em bicos dos pés, levando o consumidor, sobretudo o estrangeiro, a pensar que o vinho de facto ombreava com os melhores vinhos do mundo, os franceses, os super toscanos. Não correriam qualquer risco."

Habituadíssimo quer ao mercado de investimento, quer ao mercado paralelo ("em termos de brand building não é muito favorável para as marcas, mas é algo que elas não conseguem controlar"), Martins gostava de ver mais gente a trabalhar a questão da raridade e a abrir também dessa forma o apetite ao consumo. "É preciso criarmos uma grande força de vinhos portugueses para chegarmos a esse patamar."

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O novo Barca Velha 2015 tem preço base de 860 euros na loja da Sogrape SERGIO FERREIRA
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