Ponto de situação

Qual é o limite da intimidade que se pode ter com alguém? Sim, as perguntas são as novas discotecas. Procuro-as em êxtase e é graças a elas que não durmo.

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"Já quis ser veterinária, até descobrir que isso implicava ter de sedar animais de pequeno e grande porte" Gustavo Fring/pexels
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É chegada a hora de fazer um ponto de situação. Já quis ser veterinária, até descobrir que isso implicava ter de sedar animais de pequeno e grande porte. Já quis ser mais alta, para poder chegar às cómodas e às gavetas das coisas proibidas, ou para andar numa montanha russa.

É claro que a vida me apanhou desprevenida. Às vezes paro e pergunto-me se não é esquisito estarmos no mesmo corpo desde o nascimento. Ou se a vida dos outros também implicou uma participação súbita e pouco natural no quotidiano da classe média.

Pergunto-me se os meus dias agora interessariam a pessoas do meu passado. Já quis ser quem mantém as costas muito direitas.

Sei agora que as coisas custam. E que os guindastes aparecem sempre nas fotografias.

É evidente que há uma tendência muito natural para os padrões.

E mentiria se dissesse que a frequência com que me encontro de senha na mão na fila de uma farmácia não me inquieta. É chegada uma altura em que é mais normal que as minhas amigas me perguntem se tenho descansado bem.

Já quis que o amor fosse a coisa mais importante de todas. Já quis que o amor deixasse de ser a coisa mais importante de todas.

Mas agradeço por ter a quem ligar para poder contar uma ideia. E depois o silêncio, e tentar interpretar se é silêncio de ideia boa ou silêncio de ideia má.

Qual é o limite da intimidade que se pode ter com alguém? Sim, as perguntas são as novas discotecas. Procuro-as em êxtase e é graças a elas que não durmo.

O que vou escrever tem um destino indefinido, como o de todas estas canetas sem tampa dentro de uma caneca cujo fundo está pintalgado.

O corredor do supermercado torna difícil às vezes lembrar que somos corpos humanos a caminhar num corpo celestial.

Já quis ser capaz de acender sozinha uma lareira. De quantas desistências se faz afinal uma vida?

Uma das minhas primeiras recordações é turva, mas eu pedalava e todos aplaudiam. Pedalava muito e aplaudiam muito.

Que dias e que noites seriam dignos de integrar o balanço? A noite no deserto do Atacama ou a noite chuvosa num restaurante parisiense escapariam. E não seria o que escapa o que verdadeiramente é? O que levar connosco? Aquilo que já esquecemos.

Mas sobretudo isto: Não deixar nunca que haja mais aplauso do que pedal.

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