O currículo como cultura de reparação histórica

Não podendo ser o colonialismo um assunto tabu, do qual não é conveniente falar, é essencialmente através da educação escolar que parte dessa reparação pode ser feita.

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Aborígenes vestidos com os trajes tradicionais durante a Semana Nacional de Reconciliação DAVID GRAY/Reuters/Arquivo
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As Primeiras Nações são realidades bem evidentes em diversos países colonizados ao longo de vários séculos, com destaque para o Canadá e para a Austrália.

Trata-se da defesa dos direitos de autodeterminação e soberania de comunidades indígenas que estão na base da formação de uma nação, reconhecendo-se não só a sua legitimação cultural e política, mas também o modo como tem sido discutida a cultura de reparação, que não fica unicamente por pedidos de desculpa às gerações afetadas ou pela devolução de bens culturais.

Não podendo ser o colonialismo um assunto tabu, do qual não é conveniente falar, é essencialmente através da educação escolar que parte dessa reparação pode ser feita, inserindo-se no currículo temáticas sobre a compreensão intercultural e o respeito pelos direitos humanos.

Mesmo ao nível da História, não é crível ter uma posição absoluta ou desligada da conexão espácio-temporal, na medida em que não existe uma única perspetiva paradigmática, nem tão-pouco um único discurso para lá da globalização, como evidencia Sebastian Conrad (O que é a história global?) através do conceito de entrelaçamento, que permite uma integração de várias estruturas que dão origem a mobilidades, à circulação, a interconexões ou a transferências, com efeitos profundos na sociedade, como são reconhecidos pelos estudos pós-coloniais, a partir da valorização dos contextos locais e suas identidades.

A versão atual do currículo australiano, implementado a nível nacional e pelas várias autoridades territoriais tem como foco prioritário “dizer a verdade” no contexto da reparação colonial. A Agência Australiana de Currículo, Avaliação e Disseminação (ACARA) organiza o currículo nacional em três dimensões (áreas de aprendizagem, competências gerais e prioridades curriculares transversais) que estabelecem o conhecimento essencial, a compreensão e as competências que todos os jovens australianos precisam de ter para que sejam capazes de aprender, de partilhar vivências e de moldar o seu mundo, agora e no futuro.

Assim, domínio das Humanidades e das Ciências Sociais, na escola secundária australiana (7.º ao 10.º ano), os temas da reparação são abordados na disciplina de História e na área de Civismo e Cidadania, numa perspetiva integrada e interdisciplinar.

Por sua vez, e como refere a ACARA, a compreensão intercultural é uma competência geral que está focada na aprendizagem dos alunos sobre a diversidade dos lugares e dos povos do mundo, bem como sobre a vida das pessoas, das práticas culturais, dos valores, das crenças e das formas de conhecimento. Ou seja, aprendem a importância de compreender as suas próprias histórias e as dos outros, reconhecendo o significado das histórias e das culturas das Primeiras Nações Australianas, bem como as contribuições dos migrantes australianos, demonstrando respeito pela diversidade cultural e pelos direitos humanos de todas as pessoas.

A linguagem de “dizer a verdade” está inserida nos novos descritores de conteúdo de História e de Civismo e Cidadania, principalmente do currículo da escola secundária, embora seja também abordado na escola primária (1.º ao 6.º ano) e na escola secundária superior (11.º e 12.º ano), fazendo parte de uma mudança na reforma curricular na Era da Pós-Apologia, admitindo-se que é possível fazer muito mais através da educação dos jovens do que por intermédio de pedidos de desculpa ou de outras formas mais simbólicas.

A investigação realizada em educação tem destacado que as reformas curriculares realizadas em muitos países incidiram numa cultura de reparação, isto é, uma preocupação com um olhar crítico sobre o passado, mormente face à violação dos direitos humanos e a todas as formas de injustiça perpetradas pelos países colonizadores.

No Canadá, a cultura de reparação tem suscitado diversas respostas à questão da injustiça histórica no currículo, contribuindo para realçar os efeitos e as limitações de reformas muito pontuais e baseadas nos discursos de uma política de reconciliação. Aliás, a mudança na Austrália, de acordo com Mati Keynes, num artigo recentemente publicado, pode ser perspetivada através desta questão: Como é que a crescente cultura de reparação e os imperativos de “dizer a verdade” estão a remodelar a reforma curricular?

Tratar a injustiça colonial no currículo australiano tem sido considerado como um aspeto bastante positivo das mudanças operadas na educação e, consequentemente, na formação de futuros cidadãos, admitindo-se também que esse mesmo aspeto tem sido incluído numa cultura de reparação global.

Identificam-se, deste modo, as injustiças coloniais como passo necessário para uma nova transformação social e torna-se mais presente o imperativo da educação, responsável pela promoção da verdade no contexto de uma cidadania nacional, cada mais vez inserida na mundialidade das relações humanas. Por outro lado, a Era da Pós-Apologia tem sido responsável pela mudança de discursos relativamente à negação histórica e a uma perspetiva patriótica do passado colonial.

Neste sentido, poder-se-á sustentar que as reformas curriculares operadas na última década têm dado uma resposta positiva à cultura de reparação, fazendo da educação um símbolo de equilíbrio cultural. Porém, o estudo de Mati Keynes mostra que o currículo continua a legitimar o colonialismo e a apresentar formas distorcidas de conhecimento sobre o passado, ocidentalizando o conhecimento— analisado criticamente por Edward Said, em Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente – e destacando perspetivas que podem ser entendidas como neocoloniais.

É forçoso, por conseguinte, que o currículo “diga a verdade”, ao nível dos conteúdos que transforma em conhecimento escolar, para que se possa instituir num projeto de transformação social que, obrigatoriamente, inclui a compreensão profunda do passado.

A injustiça histórica, que é base da cultura de reparação, tem diversas lógicas, destacando-se a do reconhecimento de direitos fundamentais como oportunidade para a construção de um presente mais justo e solidário.

E aqui o currículo tem algo a dizer, se para tal for chamado a essa tarefa na educação dos jovens, pois não se trata de apagar a história nacional na formação de cidadãos. Pelo contrário, é necessário reforçar o seu papel na educação através de um currículo que leve os jovens a reconhecerem as injustiças coloniais (sendo fundamental falar na pluralidade e não somente na singularidade) e o papel do passado na construção do futuro, como realça a UNESCO no relatório Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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