O currículo como cultura de reparação histórica
Não podendo ser o colonialismo um assunto tabu, do qual não é conveniente falar, é essencialmente através da educação escolar que parte dessa reparação pode ser feita.
As Primeiras Nações são realidades bem evidentes em diversos países colonizados ao longo de vários séculos, com destaque para o Canadá e para a Austrália.
Trata-se da defesa dos direitos de autodeterminação e soberania de comunidades indígenas que estão na base da formação de uma nação, reconhecendo-se não só a sua legitimação cultural e política, mas também o modo como tem sido discutida a cultura de reparação, que não fica unicamente por pedidos de desculpa às gerações afetadas ou pela devolução de bens culturais.
Não podendo ser o colonialismo um assunto tabu, do qual não é conveniente falar, é essencialmente através da educação escolar que parte dessa reparação pode ser feita, inserindo-se no currículo temáticas sobre a compreensão intercultural e o respeito pelos direitos humanos.
Mesmo ao nível da História, não é crível ter uma posição absoluta ou desligada da conexão espácio-temporal, na medida em que não existe uma única perspetiva paradigmática, nem tão-pouco um único discurso para lá da globalização, como evidencia Sebastian Conrad (O que é a história global?) através do conceito de entrelaçamento, que permite uma integração de várias estruturas que dão origem a mobilidades, à circulação, a interconexões ou a transferências, com efeitos profundos na sociedade, como são reconhecidos pelos estudos pós-coloniais, a partir da valorização dos contextos locais e suas identidades.
A versão atual do currículo australiano, implementado a nível nacional e pelas várias autoridades territoriais tem como foco prioritário “dizer a verdade” no contexto da reparação colonial. A Agência Australiana de Currículo, Avaliação e Disseminação (ACARA) organiza o currículo nacional em três dimensões (áreas de aprendizagem, competências gerais e prioridades curriculares transversais) que estabelecem o conhecimento essencial, a compreensão e as competências que todos os jovens australianos precisam de ter para que sejam capazes de aprender, de partilhar vivências e de moldar o seu mundo, agora e no futuro.
Assim, domínio das Humanidades e das Ciências Sociais, na escola secundária australiana (7.º ao 10.º ano), os temas da reparação são abordados na disciplina de História e na área de Civismo e Cidadania, numa perspetiva integrada e interdisciplinar.
Por sua vez, e como refere a ACARA, a compreensão intercultural é uma competência geral que está focada na aprendizagem dos alunos sobre a diversidade dos lugares e dos povos do mundo, bem como sobre a vida das pessoas, das práticas culturais, dos valores, das crenças e das formas de conhecimento. Ou seja, aprendem a importância de compreender as suas próprias histórias e as dos outros, reconhecendo o significado das histórias e das culturas das Primeiras Nações Australianas, bem como as contribuições dos migrantes australianos, demonstrando respeito pela diversidade cultural e pelos direitos humanos de todas as pessoas.
A linguagem de “dizer a verdade” está inserida nos novos descritores de conteúdo de História e de Civismo e Cidadania, principalmente do currículo da escola secundária, embora seja também abordado na escola primária (1.º ao 6.º ano) e na escola secundária superior (11.º e 12.º ano), fazendo parte de uma mudança na reforma curricular na Era da Pós-Apologia, admitindo-se que é possível fazer muito mais através da educação dos jovens do que por intermédio de pedidos de desculpa ou de outras formas mais simbólicas.
A investigação realizada em educação tem destacado que as reformas curriculares realizadas em muitos países incidiram numa cultura de reparação, isto é, uma preocupação com um olhar crítico sobre o passado, mormente face à violação dos direitos humanos e a todas as formas de injustiça perpetradas pelos países colonizadores.
No Canadá, a cultura de reparação tem suscitado diversas respostas à questão da injustiça histórica no currículo, contribuindo para realçar os efeitos e as limitações de reformas muito pontuais e baseadas nos discursos de uma política de reconciliação. Aliás, a mudança na Austrália, de acordo com Mati Keynes, num artigo recentemente publicado, pode ser perspetivada através desta questão: Como é que a crescente cultura de reparação e os imperativos de “dizer a verdade” estão a remodelar a reforma curricular?
Tratar a injustiça colonial no currículo australiano tem sido considerado como um aspeto bastante positivo das mudanças operadas na educação e, consequentemente, na formação de futuros cidadãos, admitindo-se também que esse mesmo aspeto tem sido incluído numa cultura de reparação global.
Identificam-se, deste modo, as injustiças coloniais como passo necessário para uma nova transformação social e torna-se mais presente o imperativo da educação, responsável pela promoção da verdade no contexto de uma cidadania nacional, cada mais vez inserida na mundialidade das relações humanas. Por outro lado, a Era da Pós-Apologia tem sido responsável pela mudança de discursos relativamente à negação histórica e a uma perspetiva patriótica do passado colonial.
Neste sentido, poder-se-á sustentar que as reformas curriculares operadas na última década têm dado uma resposta positiva à cultura de reparação, fazendo da educação um símbolo de equilíbrio cultural. Porém, o estudo de Mati Keynes mostra que o currículo continua a legitimar o colonialismo e a apresentar formas distorcidas de conhecimento sobre o passado, ocidentalizando o conhecimento— analisado criticamente por Edward Said, em Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente – e destacando perspetivas que podem ser entendidas como neocoloniais.
É forçoso, por conseguinte, que o currículo “diga a verdade”, ao nível dos conteúdos que transforma em conhecimento escolar, para que se possa instituir num projeto de transformação social que, obrigatoriamente, inclui a compreensão profunda do passado.
A injustiça histórica, que é base da cultura de reparação, tem diversas lógicas, destacando-se a do reconhecimento de direitos fundamentais como oportunidade para a construção de um presente mais justo e solidário.
E aqui o currículo tem algo a dizer, se para tal for chamado a essa tarefa na educação dos jovens, pois não se trata de apagar a história nacional na formação de cidadãos. Pelo contrário, é necessário reforçar o seu papel na educação através de um currículo que leve os jovens a reconhecerem as injustiças coloniais (sendo fundamental falar na pluralidade e não somente na singularidade) e o papel do passado na construção do futuro, como realça a UNESCO no relatório Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990