O processo penal (mal) como arma e a lei (bem) como escudo

Não há contra António Costa qualquer suspeita fundada que justifique um inquérito criminal que o tenha como visado – e agora é o próprio Ministério Público que o assume.

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Em tempos que parecem desafiar a lógica, não desistamos e comecemos por um silogismo simples. A premissa maior está inscrita no Código de Processo Penal, que nos diz que correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, se ela prestar declarações é obrigatório interrogá-la como arguido. A premissa menor é conhecida pelo país inteiro: António Costa foi ouvido pelo Ministério Público na sexta-feira passada, mais de 50 dias depois de o ter pedido, e não foi constituído arguido. Conclusão? É inequívoca. Não há contra António Costa qualquer suspeita fundada que justifique um inquérito criminal que o tenha como visado. Podemos dizer que isso já toda a gente sabia. A diferença é que agora é o próprio Ministério Público que o assume. E isso devia ter o seu peso.

Em tempos que parecem desafiar a memória, não desistamos e façamos um resumo breve do que sucedeu antes:

  1. Em 7 de novembro do ano passado, António Costa, que era o primeiro-ministro de um governo eleito com maioria absoluta, demitiu-se depois de a procuradora-geral da República ter escolhido comunicar ao país que ele era visado por um inquérito criminal que corria no Supremo Tribunal de Justiça. Se o inquérito era secreto, António Costa não podia conhecer os factos que se investigavam e, por isso, não tinha como se defender deles. Mas o certo é que se tornou pública a existência de tal inquérito (a meu ver, contra a lei, que é, no artigo 86.º, 13 do Código de Processo Penal muitíssimo restritiva sobre a prestação de esclarecimentos públicos pelas autoridades judiciárias), permitindo que milhões de portugueses questionassem a retidão do seu primeiro-ministro (o que não terá sucedido em maior escala, creio, apenas por mérito seu).
  2. O juiz de instrução que apreciou o pedido do Ministério Público para aplicação de medidas de coação a outros visados não encontrou indícios de corrupção, tráfico de influência ou prevaricação relativamente a membro do Governo e não aplicou as medidas pretendidas.
  3. O Ministério Público recorreu e o que obteve no Tribunal da Relação de Lisboa, em abril, foi uma decisão unânime centrada na afirmação de que não foram encontrados indícios de crime algum: “desta análise resultou que nenhum dos factos adiantados se traduziam na comissão de crimes, não ultrapassando o desenvolvimento das funções de cada um dos intervenientes tendo todos eles atuado no âmbito das mesmas.
  4. Entretanto, várias pessoas democraticamente eleitas foram varridas da vida política e das eleições legislativas seguintes – que o Presidente da República convocou depois de ter decidido dissolver a Assembleia da República apesar de o partido político que obtivera maioria absoluta ter querido indicar outro primeiro-ministro – resultou uma nova maioria de direita. É de supor que a Operação Influencer não tenha sido totalmente indiferente a este desfecho.

Aqui chegados, as interrogações sobre este pedaço da nossa história recente vão para além do possivelmente maltratado princípio da separação de poderes.

Uma das conquistas da democracia é o fim dos processos criminais arbitrários. Nos lugares onde a democracia não existe, a justiça penal é usada como arma contra pessoas incómodas. Antes do 25 de abril de 74 os perseguidos eram os opositores políticos, também conhecidos como inimigos da nação. Depois acreditámos que tudo isso tinha deixado de ser possível, porque se escreveu no céu da madrugada inicial, inteira e limpa que as leis criminais incluem escudos que cada cidadão pode usar contra hipotéticos desmandos punitivos de quem exerce a ação penal.

No kit que recebemos pelo facto de sermos cidadãos vem necessariamente esse escudo. A cada um de nós deve ser garantida a possibilidade de o usar. A todos nós. De cada vez que desprotegemos um abrimos a porta ao aniquilamento de outro. E disso não devemos (nem podemos) esquecer-nos. Os nossos vizinhos espanhóis não se esqueceram. E, por isso, foram para a rua e manifestaram-se contra a justiça penal usada arbitrariamente como arma.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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