O lugar da dignidade humana

A dignidade é o princípio que guia o valor inerente a cada ser humano, sem olhar à sua proveniência, estatuto ou circunstância.

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Megafone P3: O lugar da dignidade Stefano Rellandini
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Nos mais variados debates sobre reparações e migrações a dignidade e valorização pela vida humana têm ficado para segundo plano. Ou talvez nem isso, talvez nem façam parte de plano algum.

A dignidade, como afirma o filósofo espanhol Javier Gomá Lanzón, parece ter caído no esquecimento enquanto conceito revolucionário do século XX. A dignidade é aquilo que nos confere igualdade por sermos todos dignos no momento da nossa origem. É o princípio que guia o valor inerente a cada ser humano, não obstante a sua proveniência, estatuto ou circunstância. A incapacidade de olharmos para cada ser humano com base neste princípio fundamental é o reflexo da crise de valores que hoje assombra o Ocidente. São testemunho disso os discursos hegemónicos e subalternos sobre migrantes, requerentes de asilo e refugiados que os colocam no lugar do inimigo e ao mesmo tempo os desumaniza em detrimento de agendas políticas.

Morte, desespero e destituição, é o título do relatório publicado em fevereiro deste ano pelos Médicos Sem Fronteiras e que dá conta de como a política europeia, seja através do reforço das suas fronteiras e da segurança interna ou por intermédio dos acordos bilaterais que externalizam as suas fronteiras, nos tornam cúmplices no sofrimento, morte, e violência além-fronteiras. É nesta lógica que o Pacto da UE sobre Asilo e Migração aprovado em abril assenta e, portanto, não é surpreendente que tenha gerado tanto controvérsia entre organizações como a Human Rights Watch ou a International Rescue Committee. O Pacto, alertam os críticos, baseia-se numa lógica de acordos que perpetua o ciclo de injustiça ao deixar pessoas em trânsito e requerentes de asilo sujeitos a maior vigilância, detenções arbitrárias e maior risco de deportação, desprotegidos e desprovidos de direitos humanos.

Se, em vez de alimentarmos a narrativa de uma crise migratória na Europa, mergulhássemos numa profunda reflexão histórica atestada pela ciência, entenderíamos que os padrões de migração se alteraram. As trajetórias migratórias inverteram-se do Norte-Sul para o Sul-Norte global, mas as desigualdades que caracterizam a divisão destes “dois mundos” prevalecem, seja através de práticas extrativistas, nas trocas comerciais desiguais, nos desequilíbrios de poder, ou nas agendas para o desenvolvimento feitas à medida do país doador e em prejuízo das reais necessidades do país recetor. A velha Europa, que acolheu em Paris, a 10 de Dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, encontra-se num profundo esquecimento daquilo que um dia foi tido como o cerne da sua identidade moral e política. E assim, segue a Europa para mais um ciclo eleitoral.

Tomar como ponto de partida o lugar que a dignidade humana ocupa dentro dos regimes de desigualdade e exclusão em qualquer debate sobre reparações ou migrações é imperativo. Em última análise, mais do que reparar os outros, estaríamos a reparar a nós mesmos.

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