Não há vento sem caniços

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

Ouça este artigo
00:00
01:11

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

"Como é que pode existir vento sem caniços como é que o desgraçado assobia"
António Lobo Antunes

Nos dedos, esta matéria escura
– dizem ser neve que cai por vocação

Cair é a ordem natural das folhas como dos dentes
cabelos ralos cumprindo com devoção
a gravidade praticando o chão
com a fé inabalável
das mortes mais pequenas.

Houve que acautelar um túmulo por pedra
fazer medrar as sombras o musgo
nas palavras mais daninhas e concretas
Amolecê-las à boca — côdea de um pão —

Tudo rés daqui ao horizonte
silêncio recto e manso: um crânio
cheio de terra útero ermo
sino
sem badalo.

A cratera tomada à crosta
disputando a rocha e nós – de bruços –
como quem devora as sombras
com a língua.

A mão destoa anémica na paisagem
e segura ainda a haste caniço ou lasca
caule de um cravo
onde o vento finge ainda assobiar.


Rita Taborda Duarte. Nasceu um ano menos um dia antes do 25 de Abril, Sempre! Fascismo nunca mais! Poeta e professora do ensino superior, tem mais de uma vintena de títulos entre poesia e literatura para infância. O seu último livro, Não Desfazendo (IN-CM), reúne 25 anos de poesia e foi distinguido pelo prémio Fundação Inês de Castro, 2023.

Sugerir correcção
Comentar