Mais de mil obras de Damien Hirst terão sido feitas em série e mais tarde do que o datado
Investigação do diário The Guardian revela esta quarta-feira escrutínio em torno da colecção The Currency, que chegou a ter um evento de incineração de obras para sobreviverem em NFT.
Uma investigação do diário britânico The Guardian revela esta quarta-feira que pelo menos mil pinturas que o artista Damien Hirst datou de 2016 foram criadas em massa anos mais tarde pela equipa do conhecido autor do crânio com diamantes For The Love Of God ou de muitas pinturas pintalgadas — é precisamente um projecto inspirado nessas pinturas às pintas, a colecção The Currency, que o britânico decidiu queimar para que coleccionadores mantivessem apenas a sua versão NFT, que está agora sob escrutínio.
Hirst é um dos rostos mais conhecidos da cena da Young British Art, movimento nascido nos anos 1990, e em 2022 protagonizou um dos momentos da febre NFT nas artes: a 12 de Outubro começou a incinerar centenas de obras em papel para que sobrevivessem apenas as suas versões de criptoarte, ou seja os tokens não fungíveis (conhecidos pela sigla NFT, baseados na tecnologia blockchain). The Currency eram dez mil NFT, dez mil obras originais das suas famosas pintas, e os coleccionadores escolhiam ficar com a cópia física ou com a versão digital. O valor de cada uma, do tamanho de uma folha A4, rondava os 2 mil euros.
A maioria, 5149, escolheu as obras palpáveis, enquanto 4851 optaram pelos NFT, segundo a Newport Street Gallery, que representa o artista, disse à agência Reuters na altura. A Heni, a única vendedora autorizada e que é gerida pelo gestor financeiro de Hirst, explicitava que as obras tinham sido “criadas à mão em 2016”. Na altura, as obras eram descritas pela Reuters como tendo sido “criadas em 2016 em papel feito à mão e numeradas, tituladas, carimbadas e assinadas”; o artista disse que cada um dos dez mil NFT “corresponde a uma obra de arte única e física feita em 2016”.
Responder ao mercado
A primeira fase da venda decorreu em 2021, explica o Guardian, e rendeu cerca de 16,6 milhões de euros. Seguiu-se a queima, ao vivo via Instagram, de mil obras, em Outubro de 2022. Mas cinco fontes conhecedoras da execução das obras, e que segundo o Guardian incluem alguns dos pintores que colocaram as pintas nos papéis em causa, garantem que muitas delas foram produzidas em massa entre 2018 e 2019.
Terão estado envolvidos dezenas de pintores, contratados pela empresa de Hirst, a Science Ltd., em estúdios em Gloucestershire e Londres. O ambiente é descrito como fabril. Cada folha tinha um holograma e uma marca de água da cabeça de Hirst. O jornal diz ter visto vídeos de centenas das obras a ser pintadas por vários artistas e postas a secar. Sem chegar a qualquer explicação para a produção massificada e posterior destas obras, o diário britânico considera “plausível” que tenham sido feitas para responder à procura de NFT, “que na altura eram vistas como uma novidade potencialmente lucrativa no mercado da arte”.
Os advogados de Hirst e da Science não negaram que pelo menos mil pinturas datadas pelo artista como sendo de 2016 tenham sido pintadas anos depois, nem responderam a questões sobre essa datação errónea. Negaram, porém, que o artista tenha sido intencionalmente falacioso, explicando que é prática comum de Hirst datar as obras físicas de um projecto de arte conceptual com a data da concepção do projecto. O Guardian encontrou, no entanto, duas pinturas das pintas com datas de 2018 e 2021, com os advogados de Damien Hirst a justificar que tinham sido “mal datadas após alterações posteriores nos títulos das obras”.
The Currency nasceu em 2016 e destinava-se a tentar criar uma forma de dinheiro a partir da arte. As obras em que se inspirou, com pintas coloridas, algumas geometricamente alinhadas, outras em versão mais caótica, pertencem à famosa série Spots de Hirst e na exposição que a Gagosian Gallery promoveu em 2012, The Complete Spot Paintings. Esta série está datada entre 1986 e 2011, balizas para o primeiro quadro e para o mais recente, na altura, que continha 25.781 pintas sem nunca repetir uma cor. A existência dos NFT só chegou à atenção de Hirst, disse o seu amigo e gestor da Heni, Joe Cage, em 2018.
O Guardian recorda que em Março noticiara que outras das suas obras mais conhecidas, as esculturas com animais conservados em formol e datadas da década de 1990, tinham sido feitas em 2017 — algumas estiveram expostas em museus e uma foi vendida por cerca de sete milhões de euros. Estava datada de 1999.