“Tens cá uma pancada...”
A primeira vez que me aconteceu ser esmigalhada por um instrumento musical publicamente, não aconteceu com um instrumento de grande porte. Não fui atingida por um piano. Fui atingida por um xilofone.
Há pessoas que choram com o final dos filmes. Eu choro logo no início. Às vezes ainda mal apareceu o “Universal presents…” com uma música de orquestra decente, e já me está a escorrer uma lágrima na bochecha. O mesmo se aplica a trailers de cinema apresentados com uma voz profunda, vídeos do YouTube com velhinhos a dançar de mãos dadas, episódios finais de séries que nunca acompanhei, castings de programas de talentos. O fenómeno é mais ou menos regular: está tudo calmo, como numa uma paisagem de águas paradas, quando de repente, numa fração de tempo, a música dispara como uma flecha que atravessa o ar e… já está! Basta um simples acorde, uma batida, uma nota, um átomo musical, e inexplicavelmente… rompe-se a barragem, abrem-se as comportas, fura-se o depósito, e é uma inundação, um desabamento, um tsunami… “Buahhh!” Vá-se lá perceber.
Não sei se é da corda do violino que vibra com mais intensidade, dos tambores que rufam, do piano que se excede, mas o desenlace é o dilúvio! Incontinência lacrimal. Uma barragem chega a jorrar oitocentos mil litros de água por segundo quando se encontra cheia, já eu a ver a comédia dramática Amigos Improváveis, com banda sonora do Ludvico Enaudi, verto a mesma quantidade de metros cúbicos de água, perfurada pela música do piano que me faz cócegas no saco lacrimal, que mexe com a minha válvula de segurança. Depois mais vale deixar escorrer.
“Tens cá uma pancada…”, já ouvi em resposta a esta descrição. E não é que é isso mesmo? É uma pancada, um choque, um baque. Bate-me qualquer coisa, uma bigorna invisível. Como nos filmes do Bip Bip em que o Coiote era sempre atingido por uma cacetada monumental enquanto tentava segurar o pássaro, o papa-léguas, que lhe escapava das mãos. Por muito que se acautelasse… Pás! O pobre Coiote era surpreendido, pisado, amolgado, esmagado, espremido, às vezes pela sua própria armadilha. Por muito que eu me acautele, vem uma tecla de piano e… Pás! Uma pancada… Os desenhos animados levam com pianos em cima da cabeça o tempo todo: a Pantera Cor de Rosa, o Bugs Bunny, o Pateta… E normalmente saem ilesos. Não sei se posso dizer o mesmo.
Recordo-me do coelho Roger Rabbit, o boneco animado que coexistia com o seu corpo de cartoon nas ruas reais e concretas de Los Angeles, sobrevivendo entre criminosos e malfeitores de carne e osso, enquanto tentava escapar do “caldo” — uma espécie de poção química que servia para derreter desenhos animados como ele, que vivia apavorado pela hipótese de se desfazer. É que desfazermo-nos em privado já é suficientemente embaraçoso. Em público, então, é verdadeiramente constrangedor. É quase tão insólito como um desenho animado a tentar passar despercebido no meio de pessoas reais.
A primeira vez que me aconteceu ser esmigalhada por um instrumento musical publicamente, nem sequer aconteceu com um instrumento de grande porte. Não fui atingida por um piano. Fui atingida por um xilofone. Foi numa ocasião em que estava num infantário, rodeada de criancinhas adoráveis que dão chi-corações a cheirar a pó de talco, e de educadoras com bibes azul-bebé e braços em forma de… “Taça! Chaleira! Colher! Colherão!”. Como num episódio colorido do Looney Tunes onde nunca se espera um desfecho dramático.
Eu estava a apresentar um livro infantil até que a educadora anuncia: “Agora os meninos e as meninas vão cantar para a Ana uma canção que prepararam!” Então os meninos e as meninas levantam-se e começam a cantar com as suas vozinhas de peixinhos-balão e olhos de ursinhos-carinhosos, a abanar os cabelos de pequeno-pónei, e eu sinto um jeito no pescoço, uma cãibra nas sensações , uma espécie de: “Acho que se atravessou aqui uma coisa na garganta, uma emoção, ou uma espinha do robalo do almoço, não sei de qualquer forma está a picar e não quer sair…” E procurei tapar a cara, da forma mais delico-doce que consegui, no melhor que sei imitar de uma princesa da Disney, mesmo que seja uma imitação barata, uma réplica contrafacionada.
Até que um dos meninos lança uma nota mesmo vibrante, mesmo penetrante e bate incisivamente num xilofone… Plim! Foi exatamente no… Plim! Só tive tempo de ouvir as minhas pestanas a gritarem: “Água vaiii!!!” e dei por mim a desfazer-me no meio da canção, no meio da sala rosa, enquanto as crianças confusas olhavam para a educadora com as mãos em forma de “o que é que ela tem, professora?” e eu me dobrava sobre mim própria, com uma corcunda de Quasimodo, a tentar estancar a fuga de água, o rímel preto que escorria na cara, a derreter, até uma criança me lançar um olhar de Bambi como quem diz: “Porque é que ela está a chorar?” e outra criança ao lado fazer beicinho de: “Porque é que estás a chorar, porque ela está a chorar? ” e uma outra franzir as sobrancelhas com ar de : “Porque é que estás a chorar, porque ela está a chorar, porque ela está a chorar?”! Num inesperado dominó de crianças que começaram a chorar em catadupa, tudo porque eu não fui a tempo de vedar a enxurrada, e eles acharam que eu estava a chorar e bom… Estava. Afinal o choro também é contagioso, como o sarampo, a varicela e as gastroenterites virais.
Outra vez, estava numa conferência, mais formal, entre convidados, colegas, sentada numa meia-lua, e eu meio-aluada a tentar ouvir atentamente o orador, que mete uma música caliente, um tango, para dar ilustrar um exemplo, e… Poing! Eu levanto-me num pulo, como se tivesse uma mola na cadeira, daquelas que fazem bater com a cabeça no teto, e em que ficamos a ver estrelas e passarinhos a girar à nossa volta. A minha amiga, sentada ao meu lado, olha-me de esguelha, assustada com o salto, com um balão branco em forma de nuvem de BD a sair-lhe da cabeça, a perguntar de boca fechada: “Estás maluca? O que é que te deu? Que bicho te mordeu?” E eu a responder-lhe com os olhos, cheios, prestes a extravasar, com um balão em forma de nuvem também: “Foi o Piazzolla que me bateu. Tenho de sair!” E ela perplexa, com o balão a dizer: “Isto não é Piazzolla… É Carlos Gardel. Por una cabeza!”
E eu com a cabeça já a deitar fumo e o meu balão a vermelho e com letras a Caps Lock: “Gardel… Piazzolla… Preciso de sair, se não isto vai ser uma carga de água que não se aguenta!” Por una cabeza… Só tive tempo de sair disparada em direção à saída de emergência, a correr dali para fora a toda a velocidade, a ver tudo embaciado e a pisar os pés das pessoas incomodadas que soltavam onomatopeias: “Oh! Humpf! Eich!...” como o papa-léguas, antes que alagasse a sal, e molhasse a carpete do século XVII (que mania a de decorarem estes sítios com coisas caríssimas, sujeito a uma pessoa chorar e encher tudo de humidade e dar cabo do chão) antes que encharcasse as cadeiras, antes que afogasse os outros participantes! “Oh! Humpf! Eich!... Veja onde põe os pés!” E eu: “Perdão… Tenho de sair… É que não queria mesmo inundar a conferência, não queria nada estragar os seus sapatos, parecem de boa qualidade, trouxe colete salva-vidas? Não, pois não? Então é melhor deixar-me sair!”
Ah! E houve ainda aquela do elevador. Mais desagradável porque estava confinada ao tempo de subida até ao 16.º andar do consultório médico e à dimensão da caixa do elevador que continha umas dez pessoas espremidas, desconfortavelmente próximas. Deu-se sensivelmente quando estávamos no 4.º andar, no momento em que das colunas de som do elevador se libertou um: “Ne me quitte pas… Il faut oublier…”
Lembro-me de sentir imediatamente uma lágrima corpulenta, gorda, obesa, excessiva, a forçar a saída, o peito a ceder, o dique prestes a rebentar, e de constatar pragmaticamente: “Não… Aqui não há saída! Vou jorrar! Vamos ficar submersos, vai ser como o Titanic!” e de começar tremer o queixo, enquanto via as pessoas a trocarem caretas, coladas aos meus ombros, com ar de Dupont et Dupond: “Onde é que ela tem a cabeça? Não sabe controlar as emoções?”, “Diria mais, meu caro Dupond: Onde é que ela tem a cabeça? Não sabe controlar as emoções?”… E eu a engolir os soluços, os acordes, o timbre do Jacques Brel, o lá menor, o dó maior, a relação de dez anos que terminou justamente na manhã anterior, como um balão espremido quase a rebentar: “Tenham dó, que a música bateu-me, sou como o Coiote, o Roger Rabbit… Às vezes bate-me! Derreto-me no caldo e… Pim!!!” A porta abriu-se e eu saí disparada… Bip! Bip! Uma pancada.
Na vanguarda da teoria da física, o cientista Michio Kaku faz uma explicação da Teoria de Cordas — a teoria que pretende explicar a diversidade de forças que governam o Universo —, estabelecendo uma analogia entre as leis da física e as leis da harmonia musical: “As leis da física cuidadosamente construídas ao longo de milhares de anos de experimentação, mais não são do que leis de harmonia que se podem descrever como cordas e membranas. O Universo é uma Sinfonia de Cordas”, diz.
Esta constatação tranquiliza-me. Talvez seja por isso que sinta que, por vezes, as membranas do meu corpo estão diretamente ligadas às cordas, às supercordas que vibram no hiperespaço, e por vezes dê por mim a ressoar como uma partícula, subjugada à força da música sobre as minhas emoções. Quem sabe, mas acho que não estou sozinha quando oiço alguém a soluçar na escuridão do cinema, ou a estremecer diante de uma melodia num concerto, num bar ou na fila do supermercado, penso sempre: “Olha, lá está outro com pancada!”
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990