Continuar a inovar

O novo executivo faz um exercício crítico à governação passada em matérias relacionadas com a Cultura. Mas apresenta propostas vagas, ignora medidas já em prática ou os resultados alcançados.

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O Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery é um dos equipamentos recentemente apoiados pela DGArtes Nelson Garrido
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Gostamos de acreditar que a Cultura é vista como um dos pilares essenciais da identidade de um país, refletindo a sua História, diversidade e criatividade. Em Portugal, as políticas culturais têm enfrentado grandes desafios e alcançado avanços significativos, ao longo dos anos. Ambicionamos a construção de uma sociedade “moderna, inclusiva, sustentável e inovadora”, como é afirmado logo nas primeiras linhas do Programa do XXIV Governo Constitucional, pelo que nos parece fundamental que se realize um investimento firme, consolidado e claro em medidas que promovam a acessibilidade, a sustentabilidade e a inovação.

Não recusando a ideia de que o caminho poderá passar por “uma mudança no paradigma das estruturas promotoras da criação artística, numa ação atualizada e mobilizadora, independente e dotada dos recursos técnicos e financeiros necessários para mitigar os défices crónicos desta área governativa”, o programa do Governo não explicita em que sentido se dará essa mudança.

Concordamos que urge valorizar a “relevância dos criadores e dos diferentes atores culturais”, apoiar a “dignificação das estruturas de programação e dos artistas independentes” e defender o “princípio da livre criação”, para que assim se possa concretizar a ideia de “Um País de educação, de cultura e de ciência para inovar”. Mas, se conseguimos compreender que, neste documento orientador das políticas que pretende implementar, o novo executivo comece por fazer um exercício crítico relativamente à governação passada em matérias relacionadas com a Cultura, parece-nos algo inquietante que algumas das propostas tenham sido apresentadas de uma forma tão vaga ou que sejam reveladas medidas que parecem ignorar algumas que estão já em prática ou os resultados que têm vindo a ser alcançados. Não há nada de errado na prossecução de políticas que se têm revelado eficientes e proveitosas. Pensemos, pois, que estaremos, talvez, a dar continuidade à inovação ou que podemos ser inovadores na continuidade.

Definitivamente, um ponto no qual todos parecemos estar de acordo é que o crescimento dos financiamentos do setor – nomeadamente no que diz respeito à criação artística contemporânea – deve ser continuado e fortalecido. É crucial garantir recursos adequados para que artistas, instituições culturais e projetos criativos possam prosperar no serviço público que prestam às populações, combatendo frontalmente a precariedade, oferecendo condições laborais justas, disponibilizando verbas ajustadas às reais necessidades do setor e do território, concebendo orçamentos adequados ao investimento que se pretende realizar, e criando linhas de apoio específicas para profissionais, estruturas e projetos articuladas com outros setores. Se parece certo que todos reconhecemos o “subfinanciamento enraizado” da Cultura, avancemos, decisivamente, para um aumento real dos valores que lhe são atribuídos no Orçamento do Estado. A meta de “Aumentar em 50% o valor atribuído à cultura no Orçamento do Estado, ao longo dos próximos quatro anos” (qual valor?) resolverá esse problema?

Outro ponto crucial parece ser o investimento na descentralização das políticas culturais e na criação de novos centros irradiadores de Cultura por todo o território nacional. Para tal, será determinante que a oferta cultural não se concentre apenas nos grandes centros urbanos, mas que possa irradiar, verdadeiramente, do interior do país e a partir de zonas vistas como “periféricas”, investindo-se na formação de agentes e organizações locais, criando-se condições para o seu florescimento e o seu desenvolvimento sustentado, promovendo-se uma efetiva coesão territorial e o acesso equitativo e verdadeiramente democrático à Cultura para todas as pessoas.

Deste modo, é certo que se deverá procurar incentivar a formação contínua de pessoal autárquico e outro ligado à recente Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses – instrumento estratégico indispensável neste campo e que, estranhamente, não é mencionado no Programa do Governo –, assegurar uma credenciação rigorosa dos espaços culturais que a constituem, criar carreiras especiais da função pública que permitam a contratação de equipas devidamente qualificadas e com as competências necessárias para garantir uma gestão e programação eficaz destes equipamentos, reforçar a dotação orçamental disponível para o financiamento das programações, promover diálogos cada vez mais próximos entre a Direção-Geral das Artes, as autarquias, as equipas destes espaços culturais, artistas, estruturas e sociedade civil. Esse é o caminho que, em certa medida, tem sido trilhado e que acreditamos que nos conduzirá na melhor direção. Mas que outros percursos podemos ainda realizar?

É certo que os incentivos fiscais ao mecenato – para o qual foi aprovado um projeto de proposta de lei nos últimos instantes de governação do anterior Executivo – também poderão vir a desempenhar um papel relevante na promoção da Cultura em Portugal, fortalecendo as parcerias entre o setor público e privado, que têm ainda uma expressão muito tímida no nosso país, contribuindo para a diversificação de fontes de financiamento e uma maior sustentabilidade de estruturas e projetos. Também o Estatuto dos Profissionais da Cultura, que sofreu alterações recentes, deve ser regularmente reavaliado com vista ao seu melhoramento. Mas, por exemplo, como será feito “o alargamento da oferta do ensino artístico em diversas áreas disciplinares e formas de expressão – dança, teatro, música, cinema e artes visuais – aos primeiros anos do ensino, de forma a estimular o interesse e a ampliar significativamente os públicos da cultura e da arte, em particular dos mais jovens”? Em que moldes e em que condições?

A Performart entende que será importante dar continuidade a estas e outras linhas de atuação que têm orientado as políticas culturais em Portugal, sendo imperativo manter os avanços conquistados ao longo deste meio século de democracia, mas interessará compreender, acima de tudo, que estratégias serão implementadas que nos permitam estar mais bem preparados para lidar com os desafios que temos pela frente.

O autor escreve segundo novo acordo ortográfico

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