50 anos de Tarrafal — para que a memória não caia no esquecimento

Tenho 25 anos, por isso não vivi o 25 de abril. No entanto, vivo-o todos os dias. Eu, e todos nós, somos filhos da revolução — mesmo aqueles que tentam deturpar a sua história.

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O Tarrafal é importante. A memória é importante. Tenho um cravo tatuado no braço que todos os dias me relembra disso. Paulo Pimenta
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Quando se caminha pelo ex-campo de concentração do Tarrafal é impossível não sentirmos o impacto da História. Cada passo desperta um arrepio na pele e o peso do que ali aconteceu dificulta a respiração; espreitamos hesitantes para o interior de cada sala com receio do que ali iremos encontrar e das imagens que pode provocar em nós. Um lugar infértil e soturno que, no entanto, foi, durante duas semanas, palco de várias celebrações que terminaram na passada sexta-feira, dia 10 de Maio.

Para marcar os 50 anos do 25 de Abril e o encerramento do ex-campo de concentração (bem como a libertação dos presos políticos), organizaram-se concertos, conversas, simpósios, inaugurou-se um auditório e uma biblioteca de livros proibidos,… Foram duas semanas onde, mesmo sob o calor cabo-verdiano, os ventos da liberdade se fizeram sentir no corpo.

Duas semanas onde a palavra-chave foi “memória”, tornando-se claro que não podemos pensar o futuro sem reflectirmos sobre o passado e que nós também somos a História que herdamos: enquanto portuguesa a viver num país independente mas outrora colónia, não consigo deixar de experienciar um sentimento de culpa perante as atrocidades cometidas em nome da nação que se diz ser a minha. Acredito que não nos devemos responsabilizar pelos erros dos nossos antepassados, mas isso não significa que estamos impunes: está nas nossas mãos questionarmo-nos “como é que a História está a ser contada? Como é preservada?”. Luís Fonseca, diplomata cabo-verdiano e ex-preso político no Tarrafal, narrou um episódio passado na antiga União Soviética, em que alguém acusou o passado do país de se estar a tornar “imprevisível”. Ora, esse será o nosso legado: garantirmos que essa adulteração não acontece, que não se sobrepõe à verdade.

Tenho 25 anos, por isso, como é óbvio, não vivi o 25 de Abril. No entanto, vivo-o todos os dias. Sinto em mim o seu eco quando viajo sozinha, quando voto, quando me visto e falo como e sobre o que quero. Quando vivo a minha vida sem medo. Eu, e todos nós, somos filhos da revolução — mesmo aqueles que a tentam menosprezar e a sua história deturpar.

Todos os anos celebro esta data — para mim, a mais bonita do ano — caminhando debaixo da sombra das árvores na Avenida da Liberdade. Pela primeira vez, passei-a longe de casa, mas num lugar também essencial para a luta democrática. E quão comovente foi ouvir as palavras de Zeca Afonso em tantas vozes, ouvir a liberdade nesse local que durante tanto tempo a asfixiou, naquele bonito concerto no dia 1 de Maio que juntou Portugal, Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde (Teresa Salgueiro, Paulo Flores, Karyna Gomes e Mário Lúcio). Ouvir Zeca nesse campo, durante tanto tempo estéril de música, no entanto nunca estéril de esperança; essa planta de raízes teimosas que permaneceu ali escondida várias décadas, crescendo aos poucos, e sempre pronta para ser encontrada por quem estivesse disposto a procurá-la. E, como disse Paulo Flores, hoje essa esperança é madura. A melodia da liberdade sobrepôs-se ao arcaico ruído do fascismo que hoje se ouve por aí, outrora tímido e dissimulado, mas cada vez mais estridente.

Numa conversa aberta sobre o seu recém-lançado livro sobre o Tarrafal, o fotógrafo João Pina mencionou que queria mostrar como a vila é mais do que só o ex-campo. Concordo plenamente: um lugar nunca é apenas uma coisa, nunca deixa apenas uma herança. Ainda assim, atrevo-me a dizer que o maior legado do Tarrafal é ser um símbolo da liberdade, da luta e da resistência contra o fascismo, a opressão e o colonialismo, acima de quaisquer interpretações e inclinações políticas.

Abril é intemporal e a liberdade que nos trouxe não perece, não tem prazo de validade se assim o quisermos — se assim fizermos por isso. Porque a liberdade nunca está garantida. É preciso reconhecê-la e continuar a lutar por ela. Mas, para isso, temos de nos lembrar. Sempre. Dizem que temos uma segunda (e definitiva) morte quando a última pessoa que se recorda de nós falece. É assim também com as ideias: no dia em que deixarmos de gritar pelos valores mais básicos e humanos, corremos o risco que até esses desapareçam. Que não nos enganemos: lutar pela liberdade não é coisa fácil. Mas é essencial.

O Tarrafal é importante. A memória é importante. Tenho um cravo tatuado no braço que todos os dias me relembra disso.

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