Recordações de Sintra

“Hoje, serra e vila estão sequestradas por marés intermináveis de turistas, tanto que asfixiaram os bons ares da serra, poluída agora com os riquexós contemporâneos”, escreve o leitor Luís Robalo.

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Sintra LUÍS ROBALO
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O príncipe, D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gota, alheado do miasma humano que invade a entrada do palácio, cenário de uma invasão bárbara, pinta uma aguarela, uma vista com mar ao fundo. Enviuvou da rainha portuguesa e casou-se com a cantora de ópera Helise Hensler, agora condessa d’Elba, que vive num belo chalet de campo no bosque místico do Palácio da Pena.

Francis Cook, coleccionador de arte e mecenas, tomou-se de amores pela serra e construiu um palácio excêntrico (Monserrate), rodeado por um magnífico jardim com espécies de todo o mundo, uma pequena arca de Noé vegetal. Francis Bacon, o poeta romântico, numa visita anterior, sentou-se numa cadeira de jardim, nas ruínas que antecederam a nova construção, deliciado, e assistiu à quietude de um final de dia, na serra de Sintra. Quem sabe se flanando na sua cabeça, imaginações de poesias futuras, ele, um dos príncipes do romantismo.

De outros palácios não se fala, que são muitos.

Um monge, talvez frei Honório, que se diz ter vivido a pão e água em reclusão total numa gruta nos confins uterinos da serra, executa agora o seu ritual quotidiano de preces e elogios a deus.

A cena, recatada, acontece no mosteiro dos frades capuchos, lugar esculpido no granito, num recôndito sombroso de Sintra.

Nenhum turista se apercebe da existência destes personagens, nem atenta nas particularidades das coisas e das paisagens, dos seres vivos que as habitam e dos fantasmas que pairam transparentes, nos intervalos de tempo, aguardando o chamamento para o convívio com o Senhor.

Ao fim de uma espera enervante, consigo finalmente comprar travesseiros na pastelaria que o rei D. Carlos deu conselho aos proprietários para apurarem os sabores e desenvolver as vendas das queijadas, que eles assim fizeram, nessa casa chamada Piriquita, em que uma das herdeiras mais recentes (anos 40 do século passado) reinventou os travesseiros, que, a meu ver, rivalizam em sedução e sabor a outra e diversa doçaria por esse país fora.

Sintra foi um lugar bucólico, um jardim bem cuidado, primordial e aristocrático, às portas de Lisboa, quando o Eça e o Ortigão, numa diatribe competitiva, escreveram a quatro mãos e duas cabeças O Mistério da Estrada de Sintra.

Hoje, a serra e a vila estão sequestradas por marés intermináveis de turistas muito barulhentos, tanto que asfixiaram os bons ares da serra, poluída agora com os riquexós contemporâneos, e os guias com bandeirinhas e megafones, em tentativas de descrições mundanas e parcas de palavreado, os turistas impacientes, especados, todos, nas fachadas dos monumentos, ansiosos por chegarem ao fim dessas vias-sacras e dedicarem-se, antes de voltar a Lisboa, em esperas prolongadas em filas mais ou menos organizadas, a degustar o tal do pastel e do travesseiro.

Fui um peregrino fiel nos passeios pela serra e as suas aldeias saloias, algumas, o Penedo, que em tempos outros teve uma festa pagã em que se sacrificava um touro, para prazer e degustação do seu povo. Durante 50 anos foram muitos os fins-de-semana em que, subindo pela estrada que vem do Guincho, sonhava que um dia iria, qual monge em recolhimento e êxtase do belo, viver numa casa jeitosa, que bem podia ser no estilo dito Estado Novo, que eu não deixaria de abrir janelas e portadas para a desempoeirar dos ambientes húmidos e sombrios.

Não realizei esse sonho, e agora já nem visito Sintra, terra estrangeira, a caminho de uma descaracterização, que se está a generalizar como virose incurável, transformando-nos num jardim zoológico, onde, autóctones, actuamos, sem dar conta, para as câmaras fotográficas e tablets sofisticados, recordações fugazes de uma viagem a um Portugal low cost.

Luís Robalo
Autor do blogue Redondo

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