Hit Me Hard and Soft: o glorioso desnorte de Billie Eilish
Pop que se rasga a meio, para mais facilmente encontrar as terminações nervosas.
Depressão, deambulações existenciais, uma serenidade aflitiva de tão suspeita – assim se desenrola Happier than Ever (2021), segundo álbum de Billie Eilish, até rebentar. À penúltima faixa, dinamita-se o audioterror psicológico: começa num lamento pianíssimo, só guitarra acústica e choraminguice; acaba por detonar uma bomba emo, distorção, berraria, a fúria de viver que nos tinha sido negada antes. Foi o único êxito inquestionável desta fase, um rude – mas eficaz – despertar para quem estava a passar pelas brasas (vergonha!) durante um dos melhores discos da década.
A duplicidade sempre lhe caiu bem, desde o gigantesco Bad guy (2019). O grosso do single era um cartoon gótico, animado pelo teclado fantasmagórico que todos cantarolámos – tu-ru, tu-ru-ru-ru-ru e, à saída, uma travagem brusca, um derrame de trap peçonhenta. O álbum Happier than Ever, além da faixa-título, repetia o truque, na lenta revelação de My future (rebento de soul a germinar a cada segundo) e no puro cinema de Halley’s comet (do nada, o piano descola, para rasgar o céu).
Ao terceiro disco, 50% das faixas são compósitas, instáveis de propósito. A canção híbrida é o átomo, a unidade básica de Hit Me Hard and Soft, de modo que início e fim perdem significado e utilidade. Está escarrapachada no título, aliás, a ambivalência: placagem dura e suave, o que Eilish e o irmão/produtor Finneas são capazes de consumar no decurso de uma só canção.
Canção, singular? L’amour de ma vie atravessa dois hemisférios, com uma transição acidentada, para não dizer martelada – e é igual ao litro, porque não se dá a menor quebra de energia. Primeiro, Eilish demora-se sobre soft rock compassado, com gravidade e dicção perfeita, como se possuída por Julie London (inspiração assumida no disco anterior, jazzístico aqui e ali, também nos seus desenhos harmónicos). De repente, inala hélio, teletransporta-se para uma pista de dança electroclash, e mostra que a faixa-título de Happier than Ever não tinha sido um acaso feliz: ei-la a cantar a plenos pulmões, desafogada, gloriosa. Tudo isto numa só faixa, ao estilo de In the Court of the Crimson King, dos King Crimson, ou das suites de Frank Zappa.
Blue verte desamor em pratos, guitarra eléctrica e baixo – como boa parte do álbum, emprega um instrumentário simples mas implacável – ameaçando transbordar. O suspense nunca se resolve, é trocado por outro, com orquestra e uma batida de trap glacial. Dá para adivinhar que nos vai arrastar pela subcorrente, tal como no excerto reggae de Bittersuite, e ainda mais na viagem de Chihiro (vaivém entre uma malha de baixo elástico, que a artista usa como corda para saltar, até à explosão dos teclados estilo M83) – mas o sentido de surpresa nunca se dilui. E isso não depende da fusão de mundos. Acontece também quando Eilish se rende ao amor, descerrando o punho e desfranzindo o sobrolho, em Wildflower e Birds of a feather (onde a pandeireta e a marimba frisam a inocência desta espécie de sunshine pop, mas sem drogas).
A miúda sinistra, caricatura de madeixas verdes, volta para o humor retorcido de The diner, retrato de um stalker – como se Tom Waits desenterrasse uma cápsula do tempo de 2007, com a pop paranóica que faziam nessa altura Britney Spears e Rihanna. De resto, Hit Me Hard and Soft é a obra de uma Billie Eilish desassombrada, aos 22 anos de idade, num novo pico de destreza vocal, agilidade melódica e de composição. É o mais criativo uso da prerrogativa de mandar tudo às urtigas – especialmente a ideia de uma canção estável e fechada em si própria.