Uma traição, um homicídio e um funeral anunciado

Acusar o deputado André Ventura do crime de homicídio do professor André Ventura seria porventura menos extravagante do que acusar o Presidente de traição à pátria.

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As declarações feitas pelo Presidente da República sobre ex-colónias e reparação histórica são manifestamente insuscetíveis de enquadramento no crime de traição à pátria, que o legislador português consagrou como crime contra a integridade do território ou contra a independência do Estado. Não é preciso ser penalista para chegar a esta conclusão. Basta ler a lei para perceber que para haver um crime de traição à pátria ou se atinge o território português (mesmo que separando apenas parte dele da Mãe-Pátria) ou se atinge a independência do nosso país, resultados esses que são manifestamente inalcançáveis através de manifestação de opiniões num encontro com jornalistas.

Isto é de tão meridiana evidência que a interrogação que sobra é apenas uma: o que pode levar o líder do Chega a problematizar a responsabilidade criminal do Presidente por causa deste seu comportamento tão obviamente irrelevante sob o ponto de vista criminal, aventando até a necessidade de a Assembleia da República se pôr em marcha para o tornar alvo de um processo penal?

A resposta imediata é a do costume. O Chega constrói a sua narrativa política à custa do aviltamento das instituições democráticas. Desprestigiar a Assembleia da República é um passo. Achincalhar o Presidente da República é chegar a outro órgão de soberania e adensar a teoria do caos do qual apenas um partido messiânico poderá salvar-nos. No caso, matar-se-iam dois coelhos de uma só cajadada. Irresistível.

Acresce, porém, desta vez, a descoberta de que a forma mais eficaz de causar dano a uma pessoa (e reflexamente às instituições) é lançando sobre ela o estigma da autoria de um crime. Mesmo que para o fazer tenha de se martelar a lei penal, procurando que nela caiba aquilo que o legislador evidentemente excluiu do seu âmbito. Com este modo de proceder, atinge-se no coração o princípio da legalidade criminal, o célebre nullum crimen sine lege: não há crime nem pena a não ser que estejam previstos numa lei prévia, escrita, estrita e certa. Este princípio é uma trave-mestra do Estado de Direito porque é uma garantia de liberdade contra as perseguições arbitrárias por parte do Estado ou dos seus agentes.

Quanto o político André Ventura admite a possibilidade de o Presidente da República ter cometido um crime de traição à pátria por causa daquelas declarações sobre reparação histórica, está a passar uma cruz por cima de um pilar do Direito Penal de qualquer Estado de Direito Democrático e Liberal. Está, em certo sentido, a matar o professor André Ventura que, em 2013, escreveu nas suas Lições de Direito Penal que a legalidade é um dos princípios fundamentais do direito criminal e que “para estarmos perante um crime este tem que estar classificado como tal”.

É fácil imaginar o fantasminha deprimido do professor André Ventura a arrastar correntes e lamúrias sobre a cabeça do deputado André Ventura enquanto este perora no Parlamento à medida que vai rasgando a Constituição e o Código Penal. E acusar o deputado André Ventura do crime de homicídio do Professor André Ventura seria porventura menos extravagante do que acusar o Presidente de traição à pátria (pelo menos em sentido figurado aquele homicídio ter-se-ia consumado).

Subsiste, porém, uma dificuldade inexpugnável para quem desejar que o político André Ventura seja perseguido por este crime: o homicídio exige que se mate uma pessoa viva. Se abril não tivesse acontecido há 50 anos, talvez pudéssemos contornar esse obstáculo à punição que é a letra da lei, quem sabe se até num tribunal plenário. Em democracia, porém, não é possível. Por causa do princípio da legalidade criminal e do artigo 29.º da Constituição. Aquele, precisamente, cujo funeral os 50 deputados do Chega nos estão a anunciar.

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