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Kriss fotografou uma “bomba genética” para livrar o Congo da herança colonial

Genetic Bomb, de Kriss Munsya, contém uma declaração política contra a pobreza na R.D. Congo, contra o patriarcado, contra o capitalismo, contra o colonialismo e ocidentalização da cultura do país onde o fotógrafo nasceu.

"Dark Paradise", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
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"Dark Paradise", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya

Kriss Munsya nasceu em Kinshasa, na República Democrática do Congo. Os pais emigraram para a Bélgica quando o fotógrafo tinha apenas dois anos e foi nesse país que cresceu. A partir de Vancouver, no Canadá, onde vive há cerca de cinco anos, Munsya conta ao P3 que, durante esses anos na Bélgica, nunca sentiu fazer parte do país. “A sociedade belga não te insere no seu projecto se fores negro. Perguntam-te constantemente de onde és, entre vários outros tipos de comportamentos racistas.”

Ao longo desses anos, o fotógrafo sentiu sempre “uma espécie de culpa geracional”. “Apesar de não me sentir integrado, ao mesmo tempo penso que tive sorte por ter crescido na Bélgica e não no Congo – pelo menos é o que me dizem constantemente que devo pensar, que o racismo é um pequeno preço a pagar.” Kriss Munsya não se sente belga, mas também não se sente congolês. “Não me sinto integrado em nenhum dos países. Falo com sotaque estrangeiro no Congo e eles sabem que não sou de lá. Muitos dos meus amigos e primos e familiares que nasceram, cresceram e vivem no Congo têm problemas financeiros e o confronto com essa realidade faz-me sentir culpado.”

Ser uma espécie de “eleito” que pôde escapar “à pobreza, à insegurança e à guerra a que o colonialismo deu origem” fá-lo sentir culpa; mas Munsya carrega no seu âmago outros sentimentos, como “confusão” e “desencanto”. “A confusão advém do facto de perceber que o calor, o amor e a energia emanados pela minha família no Congo nunca poderão ser substituídos, por mais que viaje”, escreve na sinopse do projecto Genetic Bomb. “O desencanto surge da constatação de que o país onde cresci continua a perpetuar valores racistas e de supremacia branca contra nós.”

Munsya acredita ser necessário cortar com alguns dos valores do passado para quebrar ciclos que considera nefandos para os cidadãos do mundo. “As novas gerações têm novas aspirações. As anteriores cresceram num mundo onde o discurso sobre o colonialismo ou racismo não era, nos meios de comunicação social, tão eloquente como é hoje.”

O projecto Genetic Bomb é uma espécie de "grito de Ipiranga" de Munsya. “O projecto pode ser interpretado de várias formas: pode descrever um país a libertar-se do seu trauma colonial; ou referir a uma pessoa a libertar-se da sua herança cultural familiar. Pode aludir a um grupo de pessoas de um país a libertar-se do colonialismo e a enfrentar-se ao espelho, mas também pode ser o ponto de partida para uma discussão mais ampla, que toca a necessidade das gerações mais jovens de romperem com a formatação da sua herança cultural.”

“Como podemos abraçar as nossas raízes e, ao mesmo tempo, viver dentro de um sistema que as envenena?”, questiona Kriss na sinopse do projecto. “Como podemos amar se somos um produto do ódio? Estamos condenados a reproduzir os mesmos padrões coloniais ou temos os ingredientes necessários, dentro de nós, para operarmos a mudança? Uma bomba genética?”

Para tentar endereçar estas questões, o fotógrafo revisitou o Congo e permaneceu três meses no país. Durante esse período, observou o seu entorno e deu corpo a um projecto rico em elementos visuais. “A cultura do Congo mudou muito nas últimas décadas”, conta. “Precisaram de adaptar-se.” Recorda que Kinshasa era, na década de 1970, uma década após a descolonização belga, a capital da música africana. “As pessoas contam-me muitas histórias sobre as festas em Kinshasa, sobre os clubes, as bandas, os concertos. Era uma cidade vibrante. Isso perdeu-se, já nada disso acontece. Hoje, as pessoas raramente festejam e pouca música se produz e isso acontece porque a cultura mudou.”

Munsya acredita que essa mudança se deve ao processo de ocidentalização do Congo, que considera ser fruto do colonialismo que vigorou entre 1908 e 1960. “O colonizador valoriza as partes de ti que se parecem com ele. A cultura original do lugar colonizado não é valorizada.” É por esse motivo que, nas suas fotografias, a pele dos seus retratados surge coberta de espelhos. “O colonizador não te vê a ti, apenas se vê a si mesmo.”

Os padrões das roupas que cobrem os sujeitos fotográficos foram também alterados. Ao fazê-lo, Munsya quis aludir para a “lavagem” da cultura local, para a sua alteração, explica. Muitos desses tecidos alterados cobrem o rosto das mulheres que retratou. “Para mim, o capitalismo e o patriarcado estão ligados: o capitalismo é um ramo do patriarcado”, nota.

Ao longo da estadia no Congo, Munsya entrevistou as mulheres da sua família e algumas amigas. “Notei que não é habitual que as mulheres falem das suas vidas, que não é comum que tenham uma voz. Percebi que não eram felizes porque nunca foram vistas, valorizadas, porque nunca ninguém cuidou realmente delas. Sempre foram invisíveis.” O fotógrafo usa esse “padrão tóxico” sobre os rostos femininos como metáfora dos “padrões da toxicidade masculina” que tornam as mulheres invisíveis naquele contexto. Mas não só. Os padrões mais populares na República Democrática do Congo, na actualidade, são de origem holandesa e não congolesa. Assim, o fotógrafo remete também para a ocidentalização da cultura local.

Para Kriss Munsya, “tudo é político”, sobretudo a arte. E Genetic Bomb contém uma declaração política contra a pobreza no Congo, contra o patriarcado, contra o capitalismo, contra o colonialismo e obliteração da cultura autóctone do país onde nasceu.

“Enquanto as nossas sociedades forem guiadas pelo lucro, pela competição e não pela cooperação, nada irá alterar-se. É possível que tenhamos de destruir muita coisa pelo caminho, inclusive a nossa própria mundividência, para que possamos vislumbrar o surgimento de algo novo.” Espera ainda poder assistir ao surgimento dessa “nova era”, mas teme que a humanidade, destruindo o planeta que habita, se autodestrua entretanto.

"Dysfunctional Intentions", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Dysfunctional Intentions", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Blur", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Blur", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Even", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Even", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Fading Frontier", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Fading Frontier", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Family Tree", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Family Tree", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Fantasy", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Fantasy", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Instrumental Introduction To Life", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Instrumental Introduction To Life", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Love Factory", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Love Factory", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Mirage", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Mirage", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Syracuse", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Syracuse", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya
"Valley of Tears", do projecto <i>Genetic Bomb</i>
"Valley of Tears", do projecto Genetic Bomb ©Kriss Munsya