Nem tudo são auroras boreais. As “fotografias” de Lisboa eram inteligência artificial

Imagens criadas através de uma ferramenta de inteligência artificial tornaram-se reais – mesmo que apenas para algumas pessoas. Houve quem dissesse ter visto aquelas luzes, mas as imagens são falsas.

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A imagem de Lisboa com auroras boreais como pano de fundo criada através de inteligência artificial PromptCraft/orge Phyttas-Raposo
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Não é caso único, muito menos num fenómeno global como as auroras boreais que inundaram noticiários e redes sociais durante este fim-de-semana: algumas das imagens não são, no entanto, verdadeiras. Como as imagens criadas por Jorge Phyttas-Raposo através de uma ferramenta de inteligência artificial e que começaram a ser divulgadas nas redes sociais (sobretudo no Facebook) como se de uma verdadeira fotografia se tratasse – houve quem garantisse que tinha visto aquele espectáculo do mesmo local, mesmo sem nunca ter acontecido tal coisa.

Embora as auroras boreais tenham concedido um espectáculo raro em Portugal, os nossos céus pintaram-se de roxo ou rosa sobretudo, com as observações mais coloridas a serem conseguidas em zonas menos iluminadas – ou seja, fora dos centros urbanos.

Resumindo: as brilhantes cores sobre a Torre de Belém, em Lisboa, ou a dança de cores como pano de fundo do Porto, na foz do rio Douro, não passam de uma criação de Jorge Phyttas-Raposo. Nas publicações, o criador faz questão de assinar “PromptCraft by Jorge Phyttas-Raposo © 2024”. O “PromptCraft” indicava que a imagem tinha sido construída a partir de um “prompt”, isto é um pedido (normalmente uma frase ou expressão) para transformar palavras numa imagem. A representação construída este fim-de-semana alcançou mais de meio milhão de pessoas e deixou Jorge Raposo “imensamente surpreendido”.

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Lisboa com auroras boreais, criada através de inteligência artificial PromptCraft/Jorge Phyttas-Raposo

O autor destas criações escolheu dois locais onde as auroras boreais não teriam grande visibilidade, como o Porto e Lisboa, mas isso não impediu a partilha das imagens como se de uma fotografia se tratasse. Há quase dois anos que Jorge Phyttas-Raposo, designer gráfico radicado em Cork (Irlanda), utiliza ferramentas de construção de imagens para entreter as mil a duas mil pessoas que interagem consigo no Facebook. O único intuito é o “entretenimento”, diz ao PÚBLICO.

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O designer português também criou uma imagem de auroras boreais no Porto PromptCraft/Jorge Phyttas-Raposo

Imediatismo e iliteracia

A publicação de fotografias criadas através de ferramentas de inteligência artificial que criam imagens a partir de texto não é nova, nem mesmo na página de Jorge Raposo, cuja partilha de imagens deste tipo é comum – mas nunca com este impacto. Além dos detalhes, como a ausência de passadiço na Torre de Belém ou a inexistência de auroras boreais tão “vivas” no Porto e em Lisboa, a própria inteligência artificial pode ajudar a detectar imagens que achamos suspeitas: os sites Fake Image Detector e AI or Not são dois exemplos que identificam estas imagens como potencialmente geradas por computador.

Inês Amaral, investigadora em consumos mediáticos no digital da Universidade de Coimbra, atribui a rápida disseminação destas imagens falsas à iliteracia digital e ao imediatismo. “A partilha de conteúdo online e com que as pessoas se identificam é muito comum”, nota, sublinhando a importância do sentimento de pertença, no qual as pessoas que partilham sentem-se parte do fenómeno – neste caso, do avistamento de auroras boreais. São estes factores que também contribuem para a propagação de imagens que constroem narrativas falsas em toda a Europa, como a disseminação de falsas imagens de refugiados ou números falsos sobre a quantidade de pessoas em Portugal que recebe o rendimento social de inserção.

Há ainda a dificuldade de identificar que aquelas eram imagens criadas por inteligência artificial. “A legenda não é legível para a maioria das pessoas”, diz Inês Amaral, salientando que a maioria não sabe o que é “PromptCraft”, nem saberá que há imagens que podem ser criadas através de ferramentas online. “Muitas pessoas nem identificam as imagens que são montagens claras”, destaca.

Mesmo que os seguidores de Jorge Raposo saibam que o autor costuma partilhar imagens criadas com inteligência artificial, a partir do momento em que estas “fotografias” saem daquela bolha de amigos e seguidores, a sua disseminação é facilitada – pois já não é apenas na página de Jorge Phyttas-Raposo que é partilhada. O designer gráfico, que nem estava em Portugal, admite que nem todos sabem o que é “PromptCraft” e que este não é um termo conhecido, mas acrescenta que referir apenas inteligência artificial é redutor, dado o trabalho que implica aos próprios criadores. “Fiquei a saber que a maioria das pessoas não sabia o que o termo significa. Estavam à espera que descrevesse na imagem. Mas também não esperava chegar a tanta gente”, explica.

Apesar disso nem é a primeira vez que acontece. Já criou por “brincadeira” imagens de cromeleques em Cinfães que foram aceites no Google Maps – e por lá ficaram durante quase um ano. Ora, não existem cromeleques em Cinfães, embora muitos tenham questionado e procurado.

Ao contrário dos cromeleques em Cinfães, as auroras boreais existem, mas são raríssimas em Portugal, com poucos avistamentos no último século, por exemplo – há registos em 1938 e em 1957 nos jornais portugueses. O fenómeno é criado por uma tempestade electromagnética de grande intensidade devido à enorme actividade do Sol neste período (e que atingiu agora o seu pico). Nestes períodos de actividade, o Sol projecta matéria contra a atmosfera terrestre. A interacção entre essas partículas projectadas e o campo magnético da Terra (ou seja, entre electrões com enormes cargas energéticas e átomos como oxigénio ou nitrogénio) cria este espectáculo de luzes, sobretudo nas regiões polares, devido aos pólos magnéticos.

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