Confirmado: chegaram ao nosso planeta raios cósmicos extragalácticos
De onde vêm os raios cósmicos mais energéticos? Concluiu-se agora que vêm de fora dos limites da nossa galáxia. Uma equipa de cientistas em Portugal está entre os mais de 400 investigadores responsáveis por esta descoberta.
No Oeste da Argentina há uma planície a 1400 metros de altitude, com vista para os Andes, que é uma autêntica armadilha para os raios cósmicos. Ao longo de um observatório com cerca de 3000 quilómetros quadrados, os detectores apanham em flagrante estas partículas vindas do Universo. Agora, depois de 12 anos a captá-las, os cientistas confirmam que os raios cósmicos mais energéticos não têm origem na nossa galáxia, a Via Láctea. Entre os “caçadores” estão investigadores portugueses ou que investigam em Portugal. O resultado vem descrito num artigo científico na edição desta sexta-feira na revista Science.
A perseguição aos raios cósmicos começou no início do século XX. Foram descobertos em 1912, pelo físico austro-americano Victor Hess, durante experiências em balões. Em 1936, o físico vence mesmo o Prémio Nobel da Física graças a este feito. Mas só foram observados pela primeira vez em 1938 pelo físico francês Pierre Auger. Já na década de 60, foram detectadas partículas cósmicas de vários joules (unidade de energia). Por exemplo, um joule equivale à energia de uma maçã quando cai da mesa da cozinha no chão.
Vejamos então o que são estes raios. São núcleos atómicos que podem ir desde o núcleo de hidrogénio, passando por núcleos de oxigénio e azoto, ou até ao ferro. Viajam quase à velocidade da luz no vazio e têm diferentes energias. Os que têm uma energia mais baixa podem ter origem na nossa galáxia. Mas não se sabia bem de onde vinham os raios cósmicos mais energéticos.
Então, em 1992, para resolver o problema do mistério da origem destes raios cósmicos, o físico Alan Watson, da Universidade de Leeds (Reino Unidos), e James Cronin, da Universidade de Chicago (Estados Unidos) e Nobel da Física em 1980, propuseram a construção de um detector gigante para os caçarem. Em 1995, anunciaram que o Observatório Pierre Auger iria ser construído na planície de Pampa Amarilla, na Argentina.
“Não temos ideia como é que as partículas podem ter esta energia enorme”, dizia Alan Watson ao PÚBLICO já em 2005, quando esteve em Lisboa para negociar a entrada de Portugal no observatório. Portugal acabou mesmo por aderir ao observatório em 2006, através do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), de um protocolo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, e com a coordenação do físico Mário Pimenta (agora presidente do LIP). A colaboração internacional conta hoje com mais de 400 cientistas de 18 países. A equipa em Portugal está no LIP em Lisboa e nos pólos do LIP em Coimbra e em Braga. Fazem trabalhos desde a operação do detector à análise de dados, assim como desenvolvimento de futuros detectores. Um dos passos desta colaboração foi agora cumprido: sabe-se que os raios cósmicos mais energéticos têm uma origem fora da nossa galáxia.
Ao todo, são 12 os cientistas portugueses ou a investigar em Portugal que assinam o artigo desta sexta-feira na Science. Pedro Abreu, professor no Instituto Superior Técnico e coordenador para a divulgação do LIP, e Lorenzo Cazon, investigador galego a trabalhar no LIP, juntam-se numa conversa telefónica para falar sobre estes novos resultados.
Chuveiros de partículas
Lorenzo Cazon entrou na Colaboração Pierre Auger em 2000, quando estava a fazer o doutoramento na Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), muito antes de vir para o LIP. Mais tarde, na Universidade de Chicago (Estados Unidos) chegou mesmo a trabalhar com James Cronin. E pode dizer que conhece bem o observatório, na província de Mendoza, na Argentina.
“É uma zona plana, árida, seca e está a 1400 metros de altitude. Não há muita vegetação e tem um aspecto calmo”, descreve. Mas ali caça-se algo bem agitado: raios cósmicos. Para isso, estão distribuídos detectores pela planície. São tanques com 3,6 metros de diâmetro e 12 toneladas de água. No total, são 1600 tanques posicionados numa configuração hexagonal e numa área de 3000 quilómetros quadrados, o que equivale à dimensão da Área Metropolitana de Lisboa.
“Dentro do tanque há água”, começa por explicar Lorenzo Cazon. “A envolver a água está uma película reflectora.” Tal como se fosse um espelho à volta da água. O tanque, como está fechado, fica em completa escuridão. “Então, quando passam as partículas [cósmicas] produz-se um efeito que se chama ‘Cherenkov’, em que as partículas produzem luz dentro do tanque, e depois com os fotomultiplicadores observamos a luz produzida pelas partículas. É assim que sabemos que passou um chuveiro.”
E o que é um chuveiro? “Os raios cósmicos chegam à nossa atmosfera e começam a interagir com os núcleos da atmosfera e a sua energia transforma-se em novas partículas”, explica por sua vez Pedro Abreu. “Em muitas novas partículas, milhares de milhões de novas partículas”, diz entusiasmado. Acontece então um chuveiro de partículas de electrões, fotões e muões. Estes chuveiros espalham-se e viajam pela atmosfera sob a forma de uma espécie de disco com vários quilómetros de diâmetro e propagam-se (muito aproximadamente) à velocidade da luz. “É como uma panqueca de partículas”, compara o investigador português. “Não têm nenhum efeito notável no planeta, até porque são muito raros.” Separados 1,5 quilómetros cada um, os detectores caçam então estes chuveiros. E um GPS nos detectores capta o tempo em que os chuveiros chegam e depois consegue-se perceber a direcção de onde vieram.
A caça a estes chuveiros decorreu entre 1 de Janeiro de 2004 e 31 de Agosto de 2016. E foi estudada a direcção de chegada de mais de 30 mil partículas ao topo da atmosfera. Estas partículas cósmicas tinham uma energia média de dois joules cada uma. “Têm mais energia os raios cósmicos de que falamos do que a energia que se atinge nos aceleradores de partículas de Genebra”, destaca Lorenzo Cazon. Um comunicado do LIP aponta mesmo que estas partículas têm energias um milhão de vezes superiores à dos protões acelerados no Large Hadron Collider (LHC), o gigantesco acelerador do Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN).
Voltemos à direcção de chegada dos raios cósmicos. Foi ela que indicou aos cientistas que estes raios vinham de fora da Via Láctea. Se chegassem por igual de todas as direcções significava que vinham da nossa galáxia. Mas não foi o que se verificou. Ou seja, chegaram mais raios cósmicos com esta energia de uma direcção do que de outras. “O observatório concluiu que a quantidade de partículas que chega de uma metade do céu é 6% superior à quantidade que chega da metade oposta”, lê-se no comunicado. “A direcção de onde nos chegam mais partículas está muitíssimo afastada (120º em ângulo) do centro e do plano da nossa galáxia, ao contrário do que se esperaria se estas partículas tivessem origem na Via Láctea.”
E para que direcção apontam? Para um sítio onde a densidade de galáxias é muito elevada. “Apontam para uma zona extragaláctica, onde há mais galáxias e mais matéria”, frisa Lorenzo Cazon. “Além de as direcções de chegada das partículas apontarem para uma região relativamente ampla do céu e não para fontes específicas, há que ter em conta que mesmo partículas de energias tão elevadas são desviadas pelo campo magnético da nossa galáxia antes de chegarem à Terra, afastando-se da sua direcção original algumas dezenas de graus”, refere ainda o comunicado. Mesmo assim, não vêm da Via Láctea.
Há ainda tantas perguntas
Este resultado “é um dos mais entusiasmantes que obtivemos e esclarece um dos problemas que queríamos resolver quando o observatório foi concebido pelo James Cronin e por mim há mais de 25 anos”, comenta Alan Watson, que agora é responsável emérito da colaboração, no comunicado. Já Pedro Assis, professor no Instituto Superior Técnico e responsável pelo grupo do LIP na colaboração, diz que é “uma importante janela para o nascimento das partículas mais energéticas que se conhecem.”
Mas ainda há muito a saber, salienta Lorenzo Cazon. “A pergunta principal é: o que são exactamente? Sabemos que são núcleos atómicos mas não sabemos que núcleos. E isso, no fundo, são ingredientes para a pergunta final: onde se produzem e como produzem estas energias tão altas?”
Tanto Lorenzo Cazon como Pedro Abreu apontam algumas respostas, ainda sem confirmação científica. Perguntamos: Que matéria extragaláctica é esta de onde vêm os raios? “Matéria normal. Podem vir de processos violentíssimos. Podem ser núcleos activos de galáxias ou explosões de raios gama”, responde Lorenzo Cazon. “Outras galáxias, onde há processos muito violentos”, diz também Pedro Abreu. E reforça: “É o que achamos. Não estamos a afirmar de onde vêm.” Agora sabe-se mesmo de onde não vêm: da Via Láctea.
Estes raios cósmicos podem dar-nos informações sobre a origem do Universo? “Isso não sabemos de todo”, adianta-se logo Pedro Abreu. Por sua vez, o físico Gregory Snow, também autor do trabalho, afirma no comunicado da Universidade de Nebrasca-Lincoln (Estados Unidos): “Pela compreensão da origem destas partículas, esperamos perceber mais sobre a origem do Universo, o Big Bang, como as galáxias e os buracos negros se formam e coisas como essas.” Lorenzo Cazon diz mesmo que estes raios cósmicos não foram produzidos directamente pelo Big Bang. “Os raios cósmicos podem estar directamente ligados a objectos astrofísicos muito violentos que existem no Universo, como buracos negros ou núcleos de galáxias”, reforça.
Ainda há raios cósmicos com energia superior e que são menos desviados pelos campos magnéticos. “As suas direcções de chegada apontam para mais perto das fontes que os produziram”, refere o comunicado. Estes raios cósmicos ainda são mais raros do que os do recente estudo, frisa Pedro Abreu. Por isso, para se aperfeiçoar a detecção destes raios cósmicos (e também dos deste trabalho) já estão a ser feitas melhorias no observatório que podem estar prontas em 2018. A caça aos raios cósmicos ainda agora começou.