O doce passado colonial português

Não tenho a pretensão de afirmar que narrativa dos colonizados é mais verdadeira e imparcial do que a do colonizador. O que defendo é a urgência de um confronto entre as duas visões, uma terceira via.

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A narrativa histórica não é neutral.

Só o confronto entre os diversos olhares nos permite invocar o passado e utilizá-lo como um forte ativo na construção de um futuro, que se deseja melhor do que o presente.

Quantos de nós não escutamos, regularmente, as seguintes afirmações? “A colonização portuguesa é que foi.” “Não teve nada a ver com a colonização inglesa, que só quis explorar as potencialidades económicas das suas colónias.” “Os portugueses gostam de mistura, pois até dormiam com as pretas”. “Portugal não é um país racista”.

Uma boa parte da sociedade portuguesa gosta da ideia de que a colonização portuguesa foi mais suave, mais ligeira, menos horrível do que as outras colonizações.

Toda a História, ou pelo menos, a esmagadora maioria da narrativa histórica sobre o passado colonial português, é construída a partir do olhar colonizador de Portugal, sendo que as frases partilhadas no início deste artigo encontram suporte, em larga escala, nesta diegese.

Por razões óbvias, a salvaguarda do interesse de Portugal, esta narrativa é parcial e pretende, propositadamente, embelezar um fenómeno que, por definição, tanto na sua génese como na sua evolução, é trágico. Não consigo e, penso que ninguém de boa sensibilidade e bom senso consegue, encontrar alguma virtude no processo de colonização.

Nós, os colonizados, ainda não conseguimos traduzir a nossa versão, não conseguimos construir a nossa narrativa histórica sobre o passado colonial. E, quando a criarmos, teremos imensas dificuldades em encontrar o espaço onde a partilhar e muitos impedimentos em a confrontar com a visão do antigo colonizador.

Uma das minhas últimas leituras foi um livro de José Vicente Lopes sobre a fome em Cabo Verde, intitulado Cabo Verde: Um corpo que se recusa a morrer - 70 anos contra a fome. Constitui um exemplo muito interessante de uma narrativa construída a partir de factos, mas a partir de um olhar do sul.

É um livro intrincado, duríssimo, que conta a história da inglória luta contra a fome em Cabo Verde. Desde o Desastre da Assistência que, em 1949, matou oficialmente 232 pessoas quando um muro se abateu sobre centenas de pessoas que se encontravam concentradas para receber ajuda alimentar, a publicação revela como era viver à míngua em Cabo Verde. Nas palavras do autor "por incompetência, por incúria, por falta de vontade política do poder político português e por outras razões, nomeadamente a própria forma como o Estado português estava organizado”, muitos cabo-verdianos morreram à fome no arquipélago.

Não tenho a pretensão de afirmar que narrativa dos colonizados é a mais verdadeira e imparcial do que a do colonizador. O que defendo é a urgência de um confronto entre as duas visões, que nos permita alcançar, uma terceira via, alternativa e coletiva.

Esta narrativa ausente, em torno das questões da colonização tem trazido enormes problemas.

  • Em primeiro lugar, tem influenciado negativamente na forma como Portugal se relaciona como as antigas colónias. Alterna-se entre um sentimento de culpa e uma atitude de não querer ser interpretado como um ato de nova colonização.
  • Em segundo lugar, tem tido consequências na forma como lidamos e interpretamos o racismo em Portugal. Dito de outro modo, esta ausência de confronto de pensamentos sobre o passado tem tido reflexos no debate sobre a questão do racismo, nomeadamente no racismo estrutural, que está a agravar-se em Portugal. Hoje, temos uma legitimação e normalização preocupante do racismo de que parece ninguém querer falar.
  • Em terceiro lugar, tem permitido a emergência de atitudes extremistas de ambos os lados, anulando, muitas vezes, as possibilidades de pontes entre as várias interpretações.

Pessoalmente, entendo que a História foi o que foi.

A História reflete “um olhar” e não “o olhar” sobre os factos. Mais do que entrarmos numa luta para derrubar os símbolos e representações sobre o passado colonial de Portugal e discutir sobre a dimensão material da reparação do mesmo, parece-me mais produtivo e inteligente a criação da narrativa própria dos colonizados e de espaços para sua visibilidade. Importante é a tal terceira via.

A intervenção do Presidente tem a importância de fazer com que se discuta a história colonial, as suas consequências e como poderemos utilizá-la para elevar as relações de Portugal com as antigas colónias. Uma das consequências deste entendimento, estou mesmo certo, será um caminho que contribuirá para a diminuição do racismo estrutural e silencioso em que nos movemos.

Nunca a narrativa histórica será neutral.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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