Caiu uma vaca roxa no quintal da minha vizinha

A AIMA nada tem a ver com o alegado descontrolo que se afirma existir na imigração. Ficou com as funções de documentação do SEF, não ficou com o controlo de fronteiras nem com a emissão de vistos.

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1. Segundo Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, a invasão de uma casa de imigrantes naquela cidade e o espancamento dos respetivos residentes foi um crime hediondo. Portanto, concluiu, a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) deve ser extinta. Desculpem? Qual é a relação entre os dois temas? Não pude deixar de recordar um exame oral, há muitos anos, em que o professor, já exasperado com a incoerência das respostas do aluno, retorquiu furioso: o que o senhor diz tem tanta lógica como eu afirmar que a minha avó é verde e que, portanto, caiu uma vaca roxa no quintal da minha vizinha. A exasperação ficou famosa em toda a universidade e aplica-se que nem uma luva à intervenção de Rui Moreira.

2. A intervenção não tem lógica, mas tem intenções. Basicamente, sugere que se há crimes de ódio contra imigrantes é porque há demasiados imigrantes, sobretudo demasiados imigrantes indocumentados, e dificuldades de integração destes. É verdade que se não houver imigrantes dificilmente haverá crimes contra imigrantes. O senhor de La Palice não diria melhor. Ironias à parte, o que está em causa nas declarações do autarca do Porto é, em primeiro lugar, responsabilizar a vítima pela agressão de que foi alvo. Deixam entrar gente a mais, ainda por cima pobres, e depois do que é que estão à espera? Uma variação óbvia do clássico, põem-se a jeito com aqueles decotes e depois queixam-se do quê?

3. Em segundo lugar, a intenção de aproveitar um contexto emocional turvado pelo discurso de ódio para questionar a política de imigração que deu origem à AIMA. Reafirme-se: não há qualquer relação entre um crime contra imigrantes e a política de imigração, independentemente da bondade ou do maior ou menor sucesso desta. Nenhuma relação a não ser a que, oportunisticamente, se quis criar para, deslocando a atenção para o domínio das emoções, afirmar uma tese sem ter que argumentar em sua defesa ou provar os seus fundamentos. Um banal truque de retórica, demasiado usado nos discursos populistas.

4. Mas vamos à discussão sobre a AIMA, uma boa ideia com dificuldades em se concretizar mas que merece ser defendida. A criação da agência, cujo objetivo central é o processamento da documentação dos imigrantes, teve por base uma ideia simples que já afirmei nas páginas deste jornal: a imigração não é um assunto de polícia. Separar as funções de documentação das de controlo policial das fronteiras, misturadas no antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), foi e é uma boa ideia. E nada tem a ver com um alegado descontrolo nas entradas de imigrantes. Aliás, esse controlo é feito, na fronteira, sobretudo pela PSP, que herdou as competências do SEF para tal, e nos serviços consulares do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a quem cabia e cabe a emissão de vistos de entrada em território nacional.

Ou seja, a AIMA começa por nada ter a ver com o alegado descontrolo que se afirma existir. A AIMA ficou com as funções de documentação que estavam no SEF, herdando deste serviço não só aquelas funções como os recursos humanos que as executavam. Não ficou com o controlo das fronteiras nem com a emissão de vistos que permite regularizar a imigração desde a sua origem.

5. Um dos males do debate público em Portugal é o seu frequente excesso de paroquialismo. Antes de começar por inventar uma qualquer narrativa sobre o alegado fracasso da política pública nacional de imigração é útil olhar para o que se passa no “resto” do mundo. Talvez assim se descubra que o que pensamos ser particularidade nacional é, afinal, dilema político global. Por exemplo, a revista The Economist publicou recentemente um artigo em que se discute o facto de o Ocidente enfrentar, hoje, um nível sem precedentes de novas entradas de imigrantes. Não Portugal, devido à extinção do SEF (haja paciência!), mas todos os países ocidentais, em todos os continentes, dos EUA à Austrália ou ao Reino Unido. Realça, ainda, que esse maior número de novas entradas inclui sobretudo imigrantes pouco qualificados e, devido à pressão que coloca sobre as autoridades nacionais, um crescente número de indocumentados. Bem-vindos ao mundo real global.

6. Neste contexto, a AIMA teve azar. Não só herdou do SEF um número astronómico de pendências (mais de 350 mil), como tem que recuperar o atraso no processamento dessas pendências e emitir as novas autorizações de residência num tempo em que, como todas as agências congéneres noutros países, enfrenta uma muito maior pressão migratória. Não tivesse o SEF sido extinto e a situação seria a mesma. Ou achamos mesmo que o SEF tinha um grau de competência e uma capacidade de atuação que excedia, em muito, a das entidades responsáveis pelo controlo da imigração nos EUA, na Austrália ou no Reino Unido?

7. Querer tirar partido de um crime para mudar a política de imigração sem se dizer ao que se vai é desonesto. E, tendo em conta a chata da realidade acima descrita, só vejo uma razão para tal. Retroceder e reforçar o tratamento da imigração como assunto de polícia. O que não me admiraria se estivesse em causa uma intervenção do Chega. Mas confesso que me surpreendeu sendo de Rui Moreira.

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