Reparações históricas: uma reivindicação libertária

A indignação contra a ideia de reparações é reveladora de como o ideário de alguns partidos é profundamente inconsistente. Não se pode advogar o direito natural à propriedade apenas quando dá jeito.

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A competência dos filósofos não é governar, obviamente. É incomodar. E o uso da lógica serve também para temperar os ânimos acicatados no espaço público. O que eu venho dizer aqui hoje é algo que pode incomodar alguma gente de direita. As reparações históricas são uma reivindicação necessária dos libertários. Aqueles que advogam o direito natural à propriedade, se quiserem ser logicamente consistentes, têm de dar o braço a torcer: o corolário da sua crença política é que quem viola o direito à propriedade tem uma dívida a pagar, e este direito não prescreve.

Há 50 anos, curiosamente no mesmo ano da nossa revolução da liberdade, foi publicado um livro de filosofia política absolutamente disruptivo: Anarquia, Estado e Utopia, de Robert Nozick. Nesse livro, Nozick desenvolveu as ideias libertárias que viriam a inspirar, pouco tempo depois, as políticas neoliberais de Reagan e Thatcher. Nozick argumenta que qualquer redistribuição é ilegítima. Ou seja, a tributação é intolerável e os serviços do Estado mínimo deveriam funcionar num regime opcional, como um mercado de seguros. Eis o seu argumento posto de uma maneira simples. Só temos direito a um bem se 1) o adquirimos de forma de justa ou 2) se esse bem foi transferido de forma justa. 3) Ninguém tem direito a um bem excepto pela aplicação repetida de 1) e 2).

Hoje, há um resíduo nozickiano nos princípios da Iniciativa Liberal, nos cartazes do CDS (“família, liberdade, propriedade”) e nalguns arrojos ocasionais do Chega. Lembram-se de quando o Chega queria privatizar todas as escolas e abolir o SNS? E das reacções de todos com uma medida minoritária do programa Mais Habitação, o arrendamento forçado? No entanto, IL, CDS e Chega são os primeiros a vociferar quanto à ideia de reparações históricas. Assim se viu nos discursos da cerimónia do 25 de Abril.

Fazem mal. De acordo com o argumento de Nozick, temos de respeitar na íntegra os princípios que regem o direito à propriedade. E isso implica, como ele próprio admite, que se considere a realização de reparações históricas. Nozick referia-se primariamente às reparações ao afro-americanos. Em Portugal, isto aplica-se ao passado colonial. Não é preciso recuar ao ouro brasileiro – embora se possa argumentar nesse sentido. Basta pensar que em 1973, oficiais portugueses devastavam vilas inteiras em Moçambique, pilhando e matando quem quer que por lá andasse.

Obviamente que há complicações jurídicas na efectivação de algumas formas de reparação histórica, sobretudo se falarmos em dívidas materiais. Mas não é disso de que estamos a falar. A absoluta indignação contra a ideia é que é reveladora de como o ideário de alguns partidos é profundamente inconsistente. Não se pode advogar o direito natural à propriedade apenas quando dá jeito. Já os partidos de esquerda não têm a necessidade lógica de defender esta medida se tomarmos em consideração as suas teses sobre esse direito. Há outros ideais que os fazem pugnar por essa política.

Mas para que não fique nada por esclarecer: os partidos que invocam o direito natural à propriedade têm também de aprender algo sobre as suas fontes filosóficas. Tanto para Nozick como para o seu patrono filosófico, John Locke, o direito à propriedade não era irrestrito. Locke diz que este direito natural aplica-se apenas “enquanto houver suficiente e em boas condições” para a restante população ver os seus outros direitos (à vida e à liberdade) respeitados.

Já nem falo do passado e das questões históricas, que alguns políticos de direita querem sempre deixar na gaveta. Falo do presente. Falo do futuro. Em tempos de extractivismo, emergência climática, degradação ambiental, especulação imobiliária desenfreada e crise habitacional, convinha que alguns políticos de direita lessem um pouco mais de filosofia política.

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