A natureza do ser

O que será mais ideológico: a abordagem de temas que estão presentes na sociedade ou uma escola assética que só ensina a ler, escrever, contar, falar inglês e preencher plataformas digitais?

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Parece (re)lançada a discussão sobre a chamada “família natural” que, pela designação, deixa implícitos dois pressupostos: a organização familiar convencional foi ditada pela natureza; outra organização é contranatura, ou seja, anormal.

Assim pensarão, sobretudo, a extrema-direita e a direita conservadora. Não surpreende porque a organização social convencional – não só familiar, mas em todos os domínios da sociedade – é facilitadora do exercício de um poder que assenta numa determinada ordem das coisas, que se apresenta como a natural. O que sair dessa norma constitui um “desvio” que carece de correção. Se o “desvio” surge na orientação sexual, contrariando o que a convenção dita para o sexo biológico, estamos perante uma disfunção, quiçá, doença do foro mental que deverá ser tratada.

Esta é uma discussão de natureza política que nos leva a perguntar se os arautos da “família natural” pretendem submeter quem não se revê na sua cartilha a tratamentos semelhantes aos que se aplicam a quem procura livrar-se de alcoolismo, toxicodependência ou do vício do jogo. Que dirão da “família natural” os dirigentes, militantes e votantes daqueles partidos que assumem a sua orientação sexual e/ou identidade de género à margem do convencionado?

Uma parte da igreja católica acompanhará aquela posição, como se infere da realização do congresso “Homens e Mulheres de Verdade”, em Fátima, que anunciava as participações de uma psicóloga que considera a homossexualidade doença mental e de um cidadão italiano que diz ter sido gay, mas já estar curado. Em boa hora, vários movimentos católicos e membros da hierarquia da Igreja demarcaram-se do evento.

Afirmam a extrema-direita e os conservadores que a questão da identidade de género é ideológica, acusando de querer impor a “ideologia de género” aqueles que defendem que a escola não pode passar ao lado desta realidade. O que será mais ideológico: a abordagem de temas que estão presentes na sociedade e na vida de cada pessoa ou a existência de uma escola assética que só ensina a ler, escrever, contar, falar inglês e preencher plataformas digitais?

O facto de no seio da dita “família natural” se verificar o maior número de abusos sexuais sobre menores, bem como frequentes situações de violência doméstica não leva a inferir que esse seja o seu padrão”, porque não é; da mesma forma, o desenvolvimento de outro tipo de relação entre pessoas não pode ser considerado aberração ou doença, porque também não é.

Em tudo o que acontece na vida, as pessoas não são iguais. São diferentes nos gostos, nas reações, nas relações, nos usos e costumes, no físico, nos pensamentos que têm sobre tudo o que se relaciona com a sua existência. Em suma, nas opções.

Ora, se o sexo biológico é identificado com o sexo genital, pressupondo capacidades reprodutivas, já a identidade de género é um sentimento comum a todas as pessoas (sentir-se do género masculino, feminino ou não-binário), independentemente da questão anatómica. Considera-se pessoa transgénero a que não corresponde à categorização imposta pelas convenções sociais, associada ao sexo biológico; a expressão de género tem a ver com os comportamentos, podendo manifestar-se pela forma de vestir, atitudes ou aspeto físico; a orientação sexual é de cada pessoa, o que sente e pensa sobre si mesma, a sua afetividade, sexualidade e atração sexual. Que tem isto de anormal?

Estando a identidade de género associada à relação da pessoa com o seu corpo, há quem, nascendo biologicamente mulher ou homem, não se identifique com o género convencional desde a infância, debatendo-se com um complexo conflito interno ao longo da vida. Já a sexualidade respeita ao relacionamento da pessoa e esse pode dar-se com pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos ou com nenhum.

Esta é uma complexa teia que se desmultiplica num elevado número de situações diversas, levantando questões que deverão merecer a nossa reflexão:

O que tem de anormal ou aberração alguém não se rever nas convenções socialmente estabelecidas? Que “desvio” existe em relação à natureza humana? Existirá em relação às convenções sociais, mas porque deverão estas prevalecer sobre a natureza humana, impondo regras que a negam? Estamos perante crime que mereça castigo? Em qual das posições existe carga ideológica: na que defende como natural a família convencional e não tolera outras, discriminando-as, ou naquela que, maioritária ou não, respeita a diferença?

Fala-se em intolerância e fica-se a pensar que esta se manifesta em atos discriminatórios e/ou de violência. Não necessariamente. Ela está presente quando não se consegue encarar a outra pessoa com a mesma naturalidade com que cada um se encara a si próprio.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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