Missão: Insuportável – Profissão: Perigo é um suplício
Ex-duplo faz filme sobre duplos. Tudo parece criado na suposição de um espectador com uma idade mental de um só algarismo.
Aparentemente, um dos grandes remorsos da indústria na era digital é o destino dos duplos, tornados cada vez mais expendable pelas simulações de computador que hoje fazem o essencial dos efeitos do cinema dito de grande espectáculo.
Há poucas semanas, a cerimónia dos Óscares integrou um número que evocava os duplos, e falava deles como duma espécie ameaçada, e agora estreia-se Profissão: Perigo, recuperação (mais de nome do que de outra coisa) de uma popular série televisiva dos anos 70 que tinha um duplo como personagem principal. David Leitch, que já nos tinha dado um filme insuportavelmente inane (Bullet Train: Comboio Bala), é ele próprio um antigo duplo, que foi subindo na hierarquia de produção até chegar ao posto de realizador.
Face a isto – um antigo duplo a fazer um filme sobre duplos –, é com a maior das boas vontades que, apesar dos antecedentes (era para lá de mau, esse Comboio Bala), nos sentamos para ver Profissão: Perigo.
Mas também, aparentemente, vai sendo regra: toda a boa vontade será castigada. E bem castigada, porque Profissão: Perigo é um suplício, um daqueles filmes que nos fazem sentir desconectados da realidade, onde nada tem graça, nada tem tino, e tudo parece feito na suposição de um espectador com uma idade mental de um só algarismo.
Se se vai à espera de uma variação sobre o franchise que hoje mais põe em evidência o arcaísmo das proezas físicas realmente executadas por seres humanos (sejam eles duplos ou não), Missão: Impossível de Christopher McQuarrie e Tom Cruise, bem se pode tirar o cavalinho da chuva (não por acaso, e até parece por despeito, há duas ou três piadas com Cruise como destinatário): fora o ocasional e raríssimo fogacho de um longo plano-sequência com Ryan Gosling logo ao princípio, e depois de um carro a capotar repetidamente (informa a diligente Internet que a proeza entrou para o Guinness, nunca um carro tinha dado tantas cambalhotas de propósito para um filme, e, no entanto, a coisa é filmada com a maior indiferença), tudo sucumbe a uma avalanche de estímulos visuais e sonoros que são a sua própria poluição visual e sonora, dão a ilusão de que há muita coisa para ver, mas são só um safanão no attention span do espectador (que o filme imagina, provavelmente com as suas razões, como sendo bastante curto, daí que esteja sempre em zapping e em sobrecarga de efeitos, parece um vídeo do TikTok com duas horas).
Depois, quer ser tudo em todo o lado ao mesmo tempo: filme de acção, comédia, filme de gangsters, romance de recasamento, e é terrivelmente básico em tudo, uma salganhada sem um pingo de graça, desprovida de qualquer sentido plástico ou coreográfico, diálogos péssimos, personagens completamente incaracterísticas (pobre Emily Blunt, enquanto Ryan Gosling repete o número de Ken apatetado que ensaiou em Barbie). Bem sabemos que, hoje, são estes filmes o foco das grandes polémicas e das grandes indignações, mas isso não é razão para que não se diga com as letras todas que Profissão: Perigo é de uma pobreza atroz, e que se imagina mal o que possa fazer um adulto na sala.