Um destes dias vi um excerto de uma entrevista com a deputada brasileira Erika Hilton em que lhe foi perguntado se algum dia seria presidente do Brasil. A resposta foi que, mais importante do que ela, especificamente, vir ou não a ser presidente do Brasil, era que as pessoas pudessem sonhar com isso: com uma mulher trans, negra, que luta ao lado das populações mais vulneráveis do país, a ocupar a presidência. O sonho, diz ela, é um direito.
Ouvir Erika Hilton emociona-me sempre. Ouvi-la a falar sobre o sonho, a esperança, em Abril, emociona-me ainda mais. E esta entrevista lembrou-me uma conversa que tive com o meu pai no início deste ano, sobre o caráter quase religioso de esperançar. O meu pai contou-me que uma vez perguntaram a Caetano Veloso se ele pensava que o Brasil ia dar certo, e porquê. A resposta: “O Brasil vai dar certo porque eu quero”.
Tal como em qualquer outra fé, o ato de esperançar não tem de ser lógico, desde que seja convicto. E tal como qualquer outra fé, esperançar ajuda-nos a suportar a dureza da vida.
Mas nos dias que correm, conversas como esta, que alimentam a minha esperança, vão-se tornando mais escassas. Pelo contrário, tenho ouvido falar cada vez mais sobre o fim dos nossos direitos, da democracia, da vida como a conhecemos, da humanidade.
O que me leva a pensar: em que momento é que a lógica se sobrepõe à fé? Será que esperançar é o suficiente para suportar, por exemplo, a eleição de 50 deputados do Chega no aniversário de 50 anos do 25 de Abril? Ou o facto de, neste contexto, não ter havido apoio da Câmara Municipal de Lisboa ao Arraial dos Cravos?
Bem, se tivermos outras religiões como exemplo, diria que em momento algum a lógica se sobrepõe à fé. Mas não é a convicção no que acreditamos, sozinha, que nos faz suportar esta dureza. Nem é por acaso que tenho usado o verbo esperançar. Em 1992, Paulo Freire publicou a obra Pedagogia da Esperança, em que fez a distinção entre a esperança do verbo esperar e a esperança do verbo esperançar. Escreveu: “Esperançar é se levantar, (…) ir atrás, (…) construir, (…) é não desistir! Esperançar é levar adiante, (…) é juntar-se com outros para fazer de outro modo…”
A frase de Caetano Veloso é forte pela sua convicção, mas também porque a resposta “porque eu quero” implica, por um lado, ação, e por outro, circularidade: sabemos que temos de fazer a nossa parte para que o Brasil dê certo; ao mesmo tempo estamos convictos de que é inevitável que o Brasil dê certo, logo também é inevitável que façamos a nossa parte. E assim a fé supera a lógica.
A convicção é um ingrediente transversal às várias religiões, mas arrisco-me a dizer que não é o principal. São antes as doutrinas, os rituais, as formas de ser e agir que alimentam essa convicção. É indo sempre à rua no dia 25 de Abril que ganhamos fôlego para dizer “25 de Abril sempre”. É essa circularidade que torna inevitável que tenhamos ocupado Largo do Carmo no passado dia 24, e que Diogo Faro resumiu tão bem quando disse, a propósito, que “se a revolução não pediu autorização há 50 anos, também não é agora que vai pedir”.
Bem sei que o mundo, se olharmos para ele logicamente, tem inspirado mais conversas sobre o fim dos tempos do que sobre a utopia. Mas já que é Abril, sugiro que façamos o exercício de sonhar, só para ver no que dá. Não só porque é um direito que temos, como disse Érika Hilton. Mas porque o sonho e a esperança – do verbo esperançar – aproximam o impossível da realidade.