Haverá poucos vinhos tintos de 1974 que estejam assim, fabulosos

Este tinto de 1974 é uma viagem ao ano de Abril e aos tempos em que o Dão granjeou fama de dar à garrafa vinhos elegantes e longevos. Também mostra como o terroir de Santar sempre foi especial.

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A Casa de Santar (Global Wines) promoveu uma prova de um tinto de Santar colheita de 1974, que 50 anos depois está absolutamente incrível José Sérgio
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Em Saint-Émilion e noutros terroirs privilegiados de Bordéus e de outras regiões vitivinícolas francesas, não seria razão de espanto. Em Portugal, mais ou menos. E escrevemos mais ou menos porque o vinho que provámos há dias é do Dão e o Dão de outrora tem fama disto (assim como a Bairrada ou Bucelas — e neste caso, com tintos e brancos), de produzir vinhos elegantes e longevos.

O desafio lançado pela Casa de Santar era provar a colheita tinta de 1974. Produzido no ano da revolução, uns seis meses depois do 25 de Abril — naquela altura muito provavelmente as vindimas em Nelas, e na maioria das vinhas do país, ainda seriam em (ou entrariam por) Outubro. Paulo Prior, o novo rosto da enologia da Global Wines — depois da saída de Osvaldo Amado no início do ano —, seleccionara cinco garrafas. Das cinco, apenas uma tinha defeito (rolha); duas estavam fabulosas.

Falámos do mesmo vinho, atenção, mas cada garrafa é uma garrafa, e isso é especialmente verdade quando se trata de vinhos velhos. À primeira garrafa, a primeira surpresa surge logo na cor: belíssima, de uma concentração extraordinária, de um vermelho acastanhado, esbatido por cinco décadas de evolução, é certo, mas menos do que o que seria de esperar. Paulo Prior recorda que, na altura, os vinhos eram de curtimenta, o que permitia extrair da película mais tanino e mais cor. E o segredo de um bom envelhecimento estará em parte no tanino, mas também na acidez e no equilíbrio que o vinho teria à nascença, não tanto no seu teor alcoólico, como se poderá pensar. À época o teor alcoólico médio andaria entre os 11% e os 12%.

Nesta primeira garrafa, o vinho estava já algo evoluído, mas sem defeito, se nos concentrássemos bem, cheirávamos ainda a fruta, uma fruta diferente, hoje um alperce seco. Estrutura belíssima, tanino, frescura e um sabor algo metálico, com um final de boca de rebuçado de café. Incrível. "Não foram atestadas, mas sou da opinião que ainda devemos fazê-lo", comentou Paulo Prior. Abrir essas preciosidades, e outras, de outros anos, antes e depois de conquistarmos a liberdade que Abril trouxe, ver como estão, descartar as que terão defeito e voltar a acondicionar com reverência as que estiverem, como estas, boas e muito boas. Porque não?

À segunda, subimos um degrau, com um vinho (sempre o mesmo, mas necessariamente outro, como já explicámos) que ainda cheira a fruta, misturada com um fumo de barrica — notas de um contacto que aconteceria sobretudo no transporte, pois, embora houvesse tonéis nas adegas da altura, o vinho seria colocado sobretudo naquelas cubas gigantes de cimento —, algum musgo, caruma... e cujo tanino conserva ainda alguma garra.

À terceira garrafa, encontrou-se o vencedor para parte significativa da audiência com quem partilhámos o privilégio de embarcar nesta viagem. Nariz exótico, fumado, com ponta de lápis, mas sem fenóis voláteis. Tanino e acidez vivos ainda. E final amargo. Para nós, era combinar a boca mais pura do 'segundo vinho' com o nariz mais original desta terceira garrafa. A quarta garrafa, aberta já ao almoço, ia na linha da primeira experiência, mas já se notava a volátil. E a quinta estava contaminada com 2,4,6-Tricloroanisol (TCA ou o famoso cheiro a rolha e a mofo).

Na garrafeira privada da Casa de Santar (Global Wines) ainda há cerca de 90 garrafas de um tinto de 1974 José Sérgio
As garrafas de um tinto de Santar de 1974 (provavelmente o Conde de Santar 1974) que a Global Wines abriu numa prova com jornalistas José Sérgio
Paulo Prior é o novo enólogo da Global Wines, chegou à empresa no início de 2024, vindo da Sogrape José Sérgio
A Global Wines abriu e deu a provar várias garrafas de um tinto produzido pelo Conde de Santar em 1974 como forma de assinalar os 50 anos de Abril, mas também se apresentar a nova equipa à impressa especializada José Sérgio
Aurélio Claro continua na viticultura da Global Wines, mas de resto há caras novas em várias áreas da empresa. Da esquerda, para a direita, Aurélio, o CEO Manuel Pinheiro, o enólogo Paulo Prior e Nuno Abreu, director comercial e de marketing José Sérgio
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Na garrafeira privada da Casa de Santar (Global Wines) ainda há cerca de 90 garrafas de um tinto de 1974 José Sérgio

Este(s) tinto(s) de 1974 terão sido engarrafados há uns 46 ou 47 anos e nasceram de "vinhas de encepamento misto", com toda a certeza, como nos explicou, ainda na vinha, Paulo Prior, que passou vinte e alguns anos na Sogrape antes de chegar à Global Wines, que produz vinho em três regiões portuguesas e no Brasil e que só no Dão detém ainda as marcas históricas Cabriz e Paço dos Cunhas.

Este 74, de enologia incógnita, só pode ter sido (é) um vinho gigante para, em 2024, superar à mesa a experiência de beber o Casa de Santar Oito Parcelas 2012, um grande, grande vinho, feito por Osvaldo Amado e no mercado desde 2021 (a Fugas destacou-o nas suas sugestões de Natal desse ano). E dá razão, o 1974 mas também o Oito Parcelas 2012, a quem, como aqui escreveu há uns anos Pedro Garcias, defende que Santar é um terroir único, berço de vinhos frescos, minerais, elegantes e longevos.

Um capital que o administrador executivo da Global Wines, Manuel Pinheiro, no cargo desde Julho último, quer reafirmar. Segundo partilhou o gestor com os jornalistas, a sua estratégia passará por valorizar ainda mais as castas autóctones — em Carregal do Sal, berço de Cabriz, há já uma novidade: a instalação de 10 hectares de vinha nova com variedades como Barcelo, Uva-Cão ou Bastardo —, aquilo que distingue as diferentes marcas do grupo e as vinhas, o lugar.

Field blend VS blend na adega

Em 1974, a vinha era outra, já não existe (e hoje as vinhas mais velhas da Casa de Santar têm 30 e tal anos), mas o mesmo princípio de jogar com o que ela dava era o mesmo. Hoje os enólogos vinificam por casta e por parcela. Na altura, ia tudo a eito, uvas brancas e tintas, porque também estavam misturadas na vinha (o chamado field blend, embora em 1974 ninguém disse isso, "era a vinha" e pronto), era tudo colhido na mesma altura e ia tudo para o lagar a esmagar, engaço incluído, à força da perna. Mas cada variedade emprestava a esse lote feito na vinha as suas melhores virtudes, fossem elas uma boa acidez, taninos que duram para sempre ou a cor valorizada à época. Tal como agora.

Mas há mais. Conta-nos Aurélio Claro, director de viticultura na Global Wines, também ele 'colheita' de 74, que à data essa mistura na vinha teria uma parte considerável de Baga. "Era o que predominava na altura. Hoje temos Baga, mas pouca. Temos muita Touriga Nacional." Têm, mas a Baga volta a estar na mira da Casa: na próxima edição do "Daozão" Oito Parcelas, Paulo Prior equaciona acrescentar alguma Baga.

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A maioria das vinhas da Global Wines no Dão está em modo de produção integrada e, por esta altura, exibindo bonitos enrelvamentos nas entrelinhas; na imagem, as vinhas de Moreira, em Santar José Sérgio
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A Global Wines construiu uma charca para aproveitar a água da chuva nas suas vinhas de Moreira, em Santar, e até ao final do ano tem planeada a construção de outra em Carregal do Sal José Sérgio

Os tratamentos, menos holísticos do que hoje, eram feitos de pulverizador de dorso às costas, daqueles em cobre que com o tempo ficavam esverdeados, e manuais. Em 2024, a maioria das vinhas da Global Wines no Dão está em modo de produção integrada, e por esta altura exibindo bonitos enrelvamentos nas entrelinhas, mas a marca Paço dos Cunhas, por exemplo, já tem 30 hectares em biológico. E nas vinhas de Moreira, de frente para o Caramulo e para a aldeia de Silgueiros, cerca de 1 Km da adega em Santar, uma charca novinha em folha já amealha a preciosa água da chuva.

Os compassos entre videiras também seriam diferentes há 50 anos, sem possibilidade de mecanizar. As uvas eram carregadas por gente, ao passo que hoje a vindima já é mecanizada e inclusive pode ser feita à noite, quando o calor assim obriga, que as máquinas não se cansam. Nem na vinha, nem na adega, que no último ano ganhou uma nova área de recepção das uvas, instalada precisamente a pensar na vindima mecânica (com grelha para escorrer os sucos que os cachos produzem fruto de um transporte necessariamente menos delicado, mas eficaz).

Santar sempre teve nos seus registos os mesmos 103 hectares de vinha que tem hoje, mas há 50 anos "havia mais área agrícola, produzia-se milho, mais não seja para alimentar os animais da quinta", conta Aurélio Claro. Enfim, a Casa de Santar seria, como outras casas agrícolas em Portugal, auto-suficiente. A restante área do total dos actuais 140 hectares (seria igual à época) são hoje floresta, existindo também algum olival.

E na adega, haveria adegueiros, mas em 1974 seria o próprio Conde de Santar a ditar a 'enologia', aconselhado pelos responsáveis da firma Carvalho, Ribeiro & Ferreira, a quem à época vendia a sua produção a granel. É difícil ter certezas, por não haver hoje na empresa registos desse modus operandi, mas terá sido assim nas décadas de 1960 e 1970, primeiro à Carvalho, Ribeiro & Ferreira e depois à Calém, que comercializava o vinho sob a marca Conde de Santar. As cerca de 90 garrafas do tinto de 1974 (os rótulos estão muito destruídos, não sendo possível afirmá-lo com segurança, mas muito provavelmente seria o Conde de Santar 1974) que ainda existem na garrafeira da Casa de Santar serão o que resta do lote que a cada ano o conde guardaria para si.

Só em meados dos anos 1980 é que a família Vasconcellos e Souza — que em 2006 vendeu 75% do seu negócio à Global Wines, o que incluiu a marca Casa de Santar, a respectiva adega e vinhas, mas continua a produzir vinhos em Santar e tem um dos jardins do projecto Santar Vila Jardim — decidiu começar a engarrafar os próprios vinhos. E só depois dessa viragem é que surgiria a marca Casa de Santar, por incentivo da distribuidora Vinalda e de José Casais, em particular.

Que em 2074 se possam abrir vinhos do Dão assim. Nascidos hoje, mas grandiosos aos 50 anos.

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