Um grupo de presos e um dos melhores enólogos do país encontram-se num terroir de Torres Vedras
A parceria entre o Estabelecimento Prisional de Leiria e a AdegaMãe resultou num vinho feito com a ajuda dos jovens da prisão. O objectivo é dar formação profissional e tentar servir um futuro melhor.
Ayrton, de 22 anos, está preso pela segunda vez no Estabelecimento Prisional de Leiria. Entrou com 18 anos, na altura com uma “mentalidade um bocadinho mais infantil”, considera. “À medida que o tempo passa, e também com as actividades que frequentei, já tenho outra maneira de ver as coisas. Afinal, isto não é assim tão mau, também me trouxe coisas boas.”
Uma delas foi ter conseguido acabar o ensino secundário. “Se estivesse na rua, não tinha acabado a escola”, garante. Durante o tempo em que esteve preso, conseguiu formar-se na área de multimédia e também recebeu um certificado em cibersegurança, o que lhe poderá trazer “possibilidades numa área de trabalho lá fora”, conjectura.
O “lá fora” está cada vez mais próximo, com a pena a meses do fim. Quando acabou o 12.º ano, foi colocado na Brigada Agrícola, a equipa que toma conta das vinhas e das estufas do Estabelecimento Prisional de Leira, conta Joana Patuleia, a directora da prisão. Na altura, não achou muita piada. “Veio logo dizer-me: ‘Não acha que eu tenho mais competências? Estive aqui a estudar para ter o 12.º ano, tenho muito mais competências do que para estar aqui.”’
Com o tempo, começou a gostar de trabalhar ao ar livre. “Podemos descobrir vocações”, continua a directora da prisão.
Agora, Ayrton é um dos reclusos do regime aberto — a fase mais avançada da pena, que inclui projectos de preparação para a liberdade — com mais conhecimentos na área da viticultura. Costuma também ser um dos escolhidos para integrar o grupo restrito que participa nas actividades fora da prisão, na AdegaMãe, em Torres Vedras, em alturas cruciais da produção de vinho.
A parceria entre o Estabelecimento Prisional de Leiria e a produtora do Oeste começou em 2018 com a criação de um vinho solidário, o Inclusus, feito na AdegaMãe com uvas vindas dos seis hectares de vinha da prisão. Depois de uma pausa durante a pandemia, a parceria continuou nos últimos anos, com várias formações dos reclusos em Torres Vedras em momentos-chave, como a poda, no Inverno, ou depois da vindima, durante o processo de fermentação do vinho.
Normalmente, a formação é dada por Diogo Lopes, o enólogo da AdegaMãe, também considerado Enólogo do Ano 2022 nos prémios da revista de vinhos Grandes Escolhas. “Não tenho a ambição nem sequer a ilusão de que [os reclusos] saiam daqui técnicos especializados em viticultura ou em enologia”, confessa. “O que eu gostava mesmo era que eles ficassem com o bichinho, para, se algum dia quiserem abraçar alguma carreira, terem aqui uma primeira experiência.”
Em dias de formação, o transporte dos reclusos de Leiria até à AdegaMãe é feito numa carrinha celular e o grupo, embora pequeno, com quatro jovens e um recluso mais velho, transferido de outro estabelecimento prisional e também em regime aberto, é sempre acompanhado por três guardas prisionais, num ambiente mais descontraído.
“É um privilégio para vocês estarem a ser ensinados pelo melhor enólogo do país”, encoraja Joana Patuleia, a directora da prisão. Na lição do dia, o objectivo é perceber como funciona a poda, “quando se acorda a vinha depois da hibernação”, explica Diogo Lopes.
Com uma tesoura, mostra como se cortam os talões, de maneira a deixar apenas “dois olhos” na videira. “Vamos cortar os ramos assim e definir a produtividade do ano seguinte”, exemplifica. “Uma poda bem feita dá-nos mais uvas e mais qualidade e esta é uma altura interessante para intervir [geralmente, a poda faz-se entre os meses de Dezembro e Fevereiro].”
Durante os trabalhos dos reclusos na vinha, de tesoura na mão, um objecto que provavelmente seria proibido dentro do estabelecimento prisional, os guardas conversam e um deles mostra-nos uma fotografia no telemóvel do processo de pisa a pé das uvas feito na própria adega da prisão.
A ideia é que os conhecimentos da formação na AdegaMãe sejam aplicados, mais tarde, também nas vinhas da prisão, plantadas há décadas na Quinta Lagar d’El Rei, em Leiria, e com uma pequena adega de produção própria. “O estabelecimento tem 77 anos e sempre teve vinha”, sublinha a directora.
Antes do nome Inclusus, o “vinho da prisão-escola”, como é conhecido, chegou a ser vendido ao público em garrafões na loja junto à portaria do estabelecimento prisional e depois em bag-in-boxes. “O salto para o engarrafamento deu-se com a AdegaMãe”, orgulha-se a directora.
Na loja do estabelecimento prisional, também se vendem chinelos em lã burel, cosidos à mão pelos reclusos. São o resultado de uma parceria de reinserção social com a Labuta, uma empresa de Leiria. Aliás, parte das vendas deste calçado vai para os jovens que os fabricam. “Eram chinelos que estavam a cair em desuso, não havia quem os fizesse, e estamos a tentar prolongar esse património cultural”, comenta.
Os legumes cultivados pelos reclusos também são vendidos na prisão a “preços mais acessíveis”, garante a directora. Muitos deles são, no entanto, doados ao Banco Alimentar. “Só no ano passado entregámos cerca de 20 toneladas de produção nossa. É um projecto solidário e isso acaba por entusiasmar os jovens reclusos porque vêem resultados imediatos e acabam por se interessar.”
Penas longas e mente aberta
No primeiro contacto com os trabalhos da Brigada Agrícola, a maioria dos reclusos torce o nariz. “Como são jovens e de zonas urbanas, nunca tiveram contacto com esta actividade”, diz a directora. “Não revelam muita motivação, mas depois acabam por gostar.”
Em 2024, o Estabelecimento Prisional de Leiria, pensado para receber reclusos dos 16 até aos 21 anos, tem uma média de idades de “20/21 anos”, estima a directora. Ao todo, são cerca de 200 reclusos, a maior parte do distrito de Lisboa — “Cascais, Oeiras, Almada, Setúbal”.
Quanto aos crimes pelos quais estão a cumprir pena, são variados, mas, “na sua grande maioria, são crimes violentos”, sublinha. “Crimes contra património com violência, roubos, homicídios e tentativas de homicídio. Estes jovens começam numa primeira fase por serem condenados a penas suspensas, que acabam por ser revogadas. Há a percepção de que são jovens e têm penas curtas, mas são penas muito longas.”
Alguns acabam por ultrapassar o limite dos 21 anos, mas já se encontram numa fase “avançada do cumprimento da pena”, explica, e podem continuar a frequentar a prisão-escola de Leiria sem terem de ser transferidos para outro estabelecimento prisional.
É o caso de César, com 22 anos, na prisão desde os 18 anos. “Paguei e estou a pagar pelo erro que fiz”, arrepende-se, já com mais de metade da pena cumprida. “Agora, é focar-me na liberdade e na família.”
Na prisão, conseguiu fazer o 7.º ano, que ainda não tinha acabado. Esteve na equipa da cozinha durante sete meses e agora, em regime aberto, passa por várias funções: “Obras, vindima, trabalhos agrícolas…”
No futuro, pondera até um trabalho nas vinhas, aproveitando a porta aberta da AdegaMãe e outras que diz terem-se aberto na sua cabeça. “O que se aprende lá dentro no estabelecimento prisional é uma coisa que abre a mente para trabalhar lá fora.”
Casamento feliz
Depois da formação da poda e antes de almoço, há tempo para uma visita à linha de engarrafamento dos vinhos da AdegaMãe para que os reclusos possam perceber todo o processo. De touca na cabeça, ajudam o pessoal da adega a encaixotar garrafas de Mar Lindo, uma das várias marcas criadas de propósito para exportação, esta para o mercado brasileiro.
Joana Patuleia considera a parceria com a adega um “casamento feliz”, diz. “Partilhamos dois valores essenciais: a crença na capacidade de mudança do ser humano e o valor da reinserção social.” O facto de ser uma “empresa com gente muito jovem” é também inspirador para os reclusos, acredita. “Cria uma certa proximidade e isso pode ser uma referência para eles.”
Bernardo Alves, fundador da AdegaMãe, faz questão de almoçar numa mesa com os reclusos e com os guardas prisionais depois da formação. Aí, há tempo para conversar e contar histórias. Por exemplo, a do enorme lustre que paira sobre a mesa, comprado na Internet e chegado à adega meses depois em mil e uma pequenas peças, quando já nem se lembrava dele.
“Quem é esta mãe da AdegaMãe?”, pergunta César. Bernardo Alves, cujo nome, aliado ao do irmão, Ricardo Alves, inspirou o nome da empresa da família, a Riberalves, famosa pelo bacalhau, recorda a fundação da casa, em 2011, uma homenagem à sua própria mãe, Manuela Alves.
Para si, o projecto com a prisão de Leiria é essencialmente “gratificante”, considera. “Da nossa parte, não tem qualquer lucro. O lucro reverte para o EPL (Estabelecimento Prisional de Leiria), sobretudo para comprar novo equipamento. É um projecto social do qual nos orgulhamos muito e que fazemos por apreço e por acreditarmos nos jovens deste país.”
A relação EPL/AdegaMãe começou com um contacto com outra prisão, a de Tires, onde a adega também tem a “pretensão de desenvolver uma parceria”, adianta Bernardo. Da prisão-escola de Leiria, receberam um pedido de ajuda de apoio “à vinha” e às “condições de vinificação”, explica. “Depois surgiu a ideia de fazermos um vinho aqui.”
O Inclusus Branco e Tinto da colheita de 2023 tem desde o dia 9 de Abril, data do 77.º aniversário da prisão, um novo rótulo, mais chamativo, desenhado pela mesma equipa que trabalha a imagem das outras referência da AdegaMãe. “Precisamos de um player a nível de retalho nacional que o reconheça como um projecto que contribui para a inclusão”, continua Bernardo Alves, que quer que o vinho se torne mais conhecido e chegue, por exemplo, a uma grande superfície comercial (por enquanto, só está à venda na loja da AdegaMãe e na loja da prisão).
Diogo Lopes, o enólogo da AdegaMãe, faz visitas ocasionais à vinha da prisão para resolver algum problema pontual. No entanto, o grosso do trabalho concentra-se na adega em Torres Vedras, principalmente na altura em que chegam as uvas em contentores, vindas da prisão. “Os miúdos ajudam a descarregar e durante a fermentação também estão presentes algumas vezes.”
O resultado do processo é “um vinho para as pessoas, descomplicado”, descreve. “Conseguimos sempre ter as uvas que vêm daquela quinta e depois temos cuidado com a transformação. Não temos nada de grandes truques, de grandes técnicas, é um vinho sem maquilhagem.”
Segundo o director-geral da AdegaMãe, a formação in loco é uma componente essencial da reinserção. “Infelizmente, muitos jovens não tiveram a oportunidade que outros tiveram. Acho que todos merecem ter conhecimento e que lhes sejam mostrados caminhos que podem surgir no futuro, mais integradores, mais sociáveis, mais calmos para a vida deles.”
Ayrton ainda não sabe o que vai fazer quando estiver em liberdade, mas não exclui o trabalho numa adega. “Como já tenho um bocadinho de experiência e gosto por aquilo que faço, é uma possibilidade”, afirma. “As pessoas bebem o vinho, acham que é só apanhar as uvas, mas não sabem como é que os vinhos são feitos. Acho interessante saber esse processo todo.”
Os dias de formação fora da prisão são uma boa maneira de “aliviar mais a cabeça”, confessa. “Dá para nos abstrairmos e sempre aprendemos mais alguma coisa. Não passamos tanto tempo fechados.”
Ópera e grilos
A Ópera na Prisão, uma actividade apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian, e que chega a juntar canto lírico e rap, é outra das parcerias de formação bem-sucedidas do Estabelecimento Prisional de Leiria e uma das mais antigas, a realizar-se desde 2004.
Os reclusos já deram concertos no auditório da Gulbenkian, em Lisboa, e, desde 2021, têm direito a um pavilhão dentro da prisão, o Mozart, só para espectáculos e ensaios que podem incluir as famílias.
Na página da fundação, Paulo Lameiro, director artístico do projecto, explica como a construção do Pavilhão Mozart, numa antiga oficina de encadernação, foi importante sobretudo para a própria comunidade “dentro da prisão assistir ao espectáculo”.
Ayrton fez dois espectáculos com a Ópera na Prisão e chegou a apresentar-se em Lisboa, onde a mãe até fez vídeos para mostrar à família, conta. “É algo interessante porque nos ajuda a nós, reclusos, a sermos mais unidos. Posso ver aquela pessoa, mas não ter vontade de conhecê-la. Ali, naquele espaço, como convivemos todos, já dá para conhecer [as pessoas] um bocadinho mais.”
Ter formação em várias áreas, incluindo na música e no teatro, pode ser um trunfo. “Fazemos um bocadinho de tudo, dá também para conhecer várias áreas”, continua o recluso de 22 anos. “[É bom] para não estarmos numa área que não gostamos e sairmos só a saber fazer aquilo.”
Joana Patuleia, a directora da prisão, refere que há outro projecto em desenvolvimento, também financiado pela Gulbenkian, a envolver “a produção de grilos” dentro do estabelecimento prisional, outra “oportunidade”.
A palavra “oportunidade” é, aliás, uma constante no seu discurso, connosco e com os reclusos. “Apesar de este ser um período difícil e de ser dolorosa a privação de liberdade, o que lhes digo é que esta pode ser uma oportunidade para adquirirem competências e preparem-se para recomeçar.”
Ayrton diz estar preparado para recomeçar. Quando estiver fora da prisão, quer levar a família a almoçar no restaurante da AdegaMãe e explicar-lhes o processo de vinificação. “Passar-lhes os conhecimentos que já tenho”, diz.
César também quer regressar noutro contexto, para almoçar com a família, na adega no Oeste onde recebeu formação. “O pior já passou”, afirma. “Agora, já não vale a pena olhar para trás, é olhar para a frente, que está quase a chegar a liberdade.”